O folheteiro

Nos últimos dez anos, Jurivaldo Alves da Silva, que prefere ser chamado de folheteiro e não de cordelista, montou uma coleção de mais de quatro mil títulos das obras dos principais poetas populares do Brasil – uma das maiores que se tem conhecimento. E pretende fundar um museu. Os livrinhos estão guardados numa chácara, onde, se dependesse da sua vontade, já estava montada a biblioteca e aberta à visitação dos admiradores e de estudiosos do tema. Esbarrou nas dificuldades financeiras. Na ponta do lápis, as contas são mais difíceis de fechar do que uma sequência de rimas. A concretização do sonho vem sendo adiada – ele não sabe até quando.

No seu acervo constam folhetos históricos, relíquias como “A História da Donzela Teodora”, do paraibano Leandro Gomes de Barro, considerado o pai do cordel no país e que se baseou em um relato de origem árabe publicado em Portugal, em 1745, e “História de Zezinho e Mariquinha”. Outro clássico é a “Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho”, de Firmino Teixeira do Amaral, publicado em 1916. Há ainda “ O Cavalo que defeca dinheiro” e o “O Enterro do Cachorro”, ambos de Leandro Gomes de Barros. Estas duas obras e “O Castigo da Soberba”, de Leonardo Mota, inspiraram Ariano Suassuna a escrever a renomada peça “Auto da Compadecida”.

Mas Jurivaldo ainda procura o raro “Direito de nascer”, de Manoel de Almeida Filho, o mais extenso cordel já escrito, com 900 estrofes. “Pago cem reais pelo livro”, anuncia. O valor oferecido é, em média, 20 vezes maior do que o preço dos livros que vende na sua banca montada no Mercado de Arte Popular (MAP). Seria uma peça rara na sua coleção. Do tempo de folheteiro lembra que o campeão de vendas era “ABC dos namorados”, de Rodolfo Coelho Cavalcante, que ensinava aos rapazes menos habilidosos algumas técnicas de como se tornar um conquistador – na linguagem contemporânea, um pegador. O mesmo livreto trazia os abecedários do amor, do beijo e da dança ).

Capa do ABC dos namorados. Edição de 1959.

“Xupado (sic) o beijo não presta/Sobre leve é natural / Beijo na boca é loucura/ Beijo na testa é leal/ Beijo nos olhos é ternura/ Beijo na mão é doçura/ Nem todo beijo faz mal”.

CANGAÇO DEU LUCRO

Depois de percorrer os sertões de Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Bahia, vendendo os folhetos, ele parou em Feira de Santana. Montou uma barraca na praça da Bandeira, onde ficou por anos – e se tornou referência. Disse que sentiu que na cidade faltava um local onde o cordel fosse a principal atração para um público fiel.

O município onde mais vendeu mais livrinhos foi Paulo Afonso (BA), onde a cultura do cangaço é forte.

“Ganhei muito dinheiro lá, falando sobre Lampião e Maria Bonita”.

Jurivaldo Alves diz que não ficou rico nas suas andanças, mas que não pode reclamar da vida.

“Recebi o suficiente para comer, educar os filhos e comprar umas coisinhas”.

Nessas idas e vindas, como motorista de caminhão e folheteiro, casou e teve filhos. Seis. Uma, Patrícia Oliveira da Silva, herdou o gosto pela literatura de cordel e se tornou sua parceira nas métricas e rimas. “É tida como umas das melhores que se tem notícias”, derrete-se.

Folheteiro é uma atividade cada vez mais rara. No passado, era aquele sujeito que percorria as feiras-livres das cidades localizadas nos quatro pontos cardeais, para vender os livrinhos que contavam histórias de amor, separações, sofrimentos, brigas, intrigas, cangaço e levavam notícias rimadas para os sertões.

“Antigamente, as cidades eram atrasadas. As notícias demoravam a chegar. A televisão e a internet mudaram tudo”.

Assim, os vendedores de livretos de poetas populares perderam mercado ou passaram a ter atividade restrita.

Para vender bem, o folheteiro tinha que ser, acima de tudo, um bom ator. Dominar a cena. O tom de voz. Ter bom domínio de palco. Mexer com a imaginação dos espectadores. E oferecer a mercadoria.

“Deve ter muginganga” – ensina Jurivaldo.

Precisa saber que homens gostam de histórias de Lampião, de cabras valentes. E as mulheres se derretem com relatos amorosos.

Virgulino Pereira, o Lampião, chefe do bando que apavorou o sertão por décadas, é um dos seus personagens favoritos. Em algumas apresentações se caracteriza como cangaceiro e vai aos encontros promovidos periodicamente pelo grupo de estudos Cariri do Cangaço, que tem o bando como tema de dissertações e debates – os encontros acontecem anualmente em  cidades diferentes. No evento, ele se realiza  com o que fala e com o que ouve.

VIDA DARIA UM FOLHETO

Aos 70 anos – quase 40 deles dedicados ao cordel, a vida de Jurivaldo bem que daria um bom folheto. Conta que aprendeu o ofício por necessidade, adolescente, ainda analfabeto. “Pedia para que as pessoas lessem e decorava”. Ainda hoje recita “Os encontros de Fernando e Joventina”, de Antônio Alves da Silva, que mudou a sua vida.

A história relata a briga do filho de um fazendeiro na rua do Meio, atual Sales Barbosa, em Feira de Santana, por anos zona do baixo meretrício. Tinha acabado de chegar de Baixa Grande (BA), sua cidade natal.

“Bem no meio da confusão para a eleição de Chico Pinto” – conta como se estivesse declamando.

Ossos do ofício.

Na pensão onde morou conheceu Antônio Alves da Silva. Como ainda não era alfabetizado, decorou o cordel e se tornou folheteiro, como meio de vida. E percorreu os sertões durante anos. Aprendeu outras histórias.

Aos 17 anos, porém, resolveu que seria motorista. Aprendeu a ler e a escrever para tirar a carteira. Estudou até o quinto ano – naquela época para ingressar no ginásio o estudante tinha que fazer o exame de admissão, um vestibulinho.

Deixou a literatura de lado por mais de duas décadas. Neste período se empregou, fundou uma pequena empresa de garrafadas (bebida curativa feita de ervas e raspas de pau), que não resistiu aos solavancos do Plano Cruzado. Voltou a ser empregado.

Há cerca de 20 anos voltou ao cordel, depois de um encontro com o homem que despertou a sua paixão por este tipo de literatura. O cordelista, por ter se tornado protestante, resistiu aos seus apelos para que desse uma ‘palinha’ nos versos que o encantara. “Decidi que lembraria de tudo. Aos poucos eles foram saindo. Quando terminei, mostrei a Antônio, que me disse que algumas passagens não existiam no original, mas que me revelara cordelista. E assim me tornei um deles”.

Tem uma freguesia cativa. “Vendo muito para outros estados, principalmente, São Paulo”. José Paulo dos Santos é um dos clientes:

“Gosto desde criança. Cordel, circo e repente não devem acabar nunca”.

É na barraca do Mercado de Arte Popular  (MAP) que Jurivaldo, espera ser a última parada de sua vida.

Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer  trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.

Compartilhe esta publicação:
Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sites parceiros
Destaques