Diante da igreja matriz – Final

Paulo Oliveira

 PARTE I

O repórter fotográfico Severino Silva, 65 anos, pediu ao mototaxista para parar diante da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Era a terceira e última etapa de uma viagem de 2.497 quilômetros, iniciada 72 horas antes no Rio de Janeiro, para onde ele migrou ainda menino.

Diante do templo onde foi batizado, Severino ficou paralisado. Não conseguiu fazer uma foto sequer, frustrando os planos traçados por mais de meio século. As lembranças jorravam como as águas da Cachoeira do Roncador, ali perto, nos limites com Bananeiras e Borborema.

Sem forças para enfrentá-las, sentou na mesa de um bar, pediu um café e deixou o estupor passar.

Pirpirituba, 22 de junho de 2022

 

A morte de Dona Josefa, a quem Severino prometia voltar à cidade natal desde que saíram juntos do sertão, fez o fotógrafo desistir da viagem. Uma noite, porém, sonhou com a mãe, muito feliz, passeando de mãos dadas com ele pelas ruas do município. E recordou da sorda e da raspadinha de maracujá, da rua da feira e da venda, onde todos que entravam Pirpirituba tinham que deixar facas, facões e armas em um balaio para evitar confusões, por determinação de um delegado.

A passagem foi comprada para o dia 19 de junho de 2022 e os 54 anos de distância foram cobertos em três dias da seguinte forma: 69 horas no ônibus entre o Rio de Janeiro e a Paraíba; duas horas no trajeto de João Pessoa, capital do estado nordestino, e Guarabira, cidade polo do Brejo Paraibano; e de lá, mais 15 minutos de moto até o destino. A atual quantidade de meios de transportes difere do tempo em que a família Silva ainda fazia promessa para chover durante a seca.

“Não havia carros na roça. Quando alguém se acidentava, botavam a pessoa em uma rede e carregavam por léguas até um determinado ponto. Ou então, se fosse possível, a vítima ia no lombo de um cavalo até o local de atendimento. Lembro que a gente fazia mutirão para roçar a estrada e facilitar o transporte das pessoas. Os mortos também eram levados em uma rede por léguas [1] até o cemitério” – contou o fotógrafo paraibano.

A possibilidade de registrar a migração às avessas e a emoção do amigo animou o documentarista uruguaio Guillermo Planel, dono de vasta filmografia, incluindo “Abaixando a máquina – ética e dor no fotojornalismo carioca” e “Abaixando a máquina 2 – no limite da linha” sobre fotógrafos que cobrem violência urbana. Os dois começaram a combinar a viagem juntos, mas Severino decidiu ir sozinho por não saber a reação que teria.

Quando a letargia passou, Severino foi ao cemitério municipal visitar os túmulos do pai e do irmão. Levava consigo uma sensação estranha, como se um filme sobre a vida dele tivesse passado em segundos. O dia acabou sem a máquina fotográfica ter sido sacada da bolsa. Chovia e o último ônibus para Guarabira havia passado. Ele telefonou para o mototaxista que o trouxera pela manhã e voltou à pousada onde se hospedara.

 A manhã seguinte encontrou o fotógrafo bem disposto. A igreja matriz, o cemitério e a usina de cana de açúcar São Francisco, desativada em 1990, foram os primeiros marcos retratados.  A produção de açúcar e álcool da indústria, situada a dois quilômetros de Pirpirituba, era exportada pelo entroncamento BX-8 da Estrada de Ferro Independência-Picuhy, também conhecido como “Parada do km 11”. O desvio, construído em 1911, pela companhia inglesa Great Western Railway Company (GWRC), funcionou no terreno da indústria até 1967, quando o escoamento dos produtos passou a ser feito por caminhões.

“Da minha casa dava para ver a fumaça da chaminé da usina. Sempre que eu ia à cidade, passava por ela. E ouvia o som bonito do apito da fábrica” – relembra.

Severino, em seguida, foi ao açude onde costumava lavar os pés e os calçados antes de entrar na sede do município. Fez o percurso duas vezes, perscrutando o casario e constatando que muitos imóveis sumiram ou foram modernizados. Ficou feliz porque as mudanças, a seu ver, não foram tão radicais.

“Pior seria se a cidade estivesse repleta de edifícios” – pensou enquanto saboreava uma pamonha.

 –*–*–

 

PARTE II

A missa na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário era obrigatória toda vez que Severino e a mãe iam à cidade. Aliás, era a primeira coisa que faziam ao chegar no centro de Pirpirituba.

O menino não gostava muito de ficar do templo porque observou que quem tinha uma condição financeira um pouco melhor olhava para os mais pobres e ria de quem estava mal vestido ou com chinelo danificado. Um dia, apesar dos ensinamentos maternos exaltando o ambiente eclesiástico pela seriedade e respeito, tomou coragem e disse:

“Mãe, eu não quero ir mais na missa.”

Dona Josefa se espantou. Pacientemente, porém, perguntou o que levara o filho àquela decisão. Ouviu do menino que ele não gostava de ver algumas mulheres debochando de pessoas carentes só porque elas usavam um calçado melhor.

Daquele dia em diante Josefa desobrigou o garoto de frequentar a igreja.

1967

 –*–*–

 

Agora, novamente diante da Matriz, no terceiro dia de visitação, Severino lembrou que deixara de ir rezar, mas passava o ano todo ansioso pela chegada da festa da padroeira, no mês de outubro. O pouco dinheiro que juntava, cortando agave e catando castanha para vender na feira, era gasto em uma ou duas voltas na roda gigante e no passeio de canoa.

“Felicidade no sertão era isso” – definiu com simplicidade.

Severino Silva  sempre foi fascinado pelas festas juninas, principalmente pelo dia de São João, quando havia fogueiras em quase tudo quanto era lugar. Não por acaso, se viu fotografando os preparativos para a comemoração na véspera do folguedo, cujas características tinham sido alteradas radicalmente.

Passeio pela cidade
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A primeira constatação foi de que os fogaréus não eram mais tão grandes quanto antigamente. Ficou surpreso ao saber que em Bananeiras, cidade da mesma região, elas são artificiais e soltam uma fumacinha de vez em quando.

Como no dia da chegada, viajou no tempo. Lembrou do brilho e do crepitar do fogo, do milho assado, da batata-doce, e de “uma coisa muito legal”: o compadre de fogueira.

“A gente dava a mão para um parente ou o amigo. Depois dizia: ‘São João disse/São Pedro confirmou/ Que nós fossemos compadres/ Que São João mandou’. Após repetir a frase três vezes se criava um vínculo para toda a vida” – recordou.

O ritual foi um gatilho para ativar os meandros da memória. A cena da mãe, avó, tia e outras mulheres da família cantando e contando piadas, enquanto cozinhavam o milho para fazer pamonha, canjica e angu, foi a primeira a surgir como um holograma diante dos olhos do fotógrafo. Depois, foi a vez dos homens aparecerem preparando as fogueiras e as bebidas. Com as tarefas concluídas, todos iam tomar banho e se arrumar para a festa.

No Sítio Pacova, na zona rural de Pirpirituba, não havia quadrilha. O São João era animado por dois repentistas. Dona Josefa de vez em quando contratava uma dupla. Eles combinavam um valor e durante a festa quem pedia uma música botava o dinheiro em um local determinado pelos artistas. Se a quantia arrecadada fosse igual ou superior ao combinado estava tudo certo. Caso contrário, o contratante tinha que pagar a diferença. Severino lembra que o pessoal dançava à luz de candeeiro. E o ritmo dominante era o forró.

A paquera corria solta durante o São João. Era a hora de um rapazote se aproximar da filha de alguém com cuidado para não dar problema. Durante a dança de roda, um ou outro casal escapava para a plantação de bananeira para dar beijos apressados e voltar antes que os pais dessem falta da menina.

No retorno à Paraíba, Severino encontrou uma festa totalmente diferente. A sanfona, a zabumba, o triângulo e o pandeiro foram substituídos pela música eletrônica e outros ritmos que, segundo ele, não tinham nada a ver. Os paredões [2] tocam funk, sertanejo universitário, sofrência, qualquer coisa.

“Eu não vim do Rio de Janeiro para ouvir isso, queria escutar o forró tradicional” – disse em tom de lamento.

No entanto, a noite foi salva pela apresentação do cantor e sanfoneiro pirpiritubense Luiz Miguel, 15 anos.

Chovia pelo terceiro dia consecutivo quando Severino voltou à pousada em Guarabira, cidade que possui boa infraestrutura hoteleira e um São João mais organizado. Pirpirituba, por sua vez, tem apenas uma hospedagem pouco conhecida até mesmo por quem é da terra.

–*–*–

 

PARTE III

Portugueses e holandeses começaram a rondar a região onde Pirpirituba surgiria em meados do século 17. Estavam em busca de ouro na Serra da Copaoba, no planalto da Borborema. Os primeiros núcleos habitacionais foram criados dois séculos depois e se desenvolveram graças ao cultivo e comércio de algodão. Distrito de Guarabira desde 1892; vila em 1938; e emancipação em 1953. Essa foi a trajetória da cidade.

O pequeno município do Brejo Paraibano tinha 10.590 moradores há três anos. Apenas 7% da deles trabalhavam com carteira assinada. A taxa de mortalidade infantil era de 21 óbitos a cada mil nascidos vivos. No mesmo ano, foram registrados 20 casamentos, cinco divórcios, 136 nascimentos e 25 mortes – duas delas de fetos.

IBGE Censo 2020

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Uma das perguntas que Severino se fez durante a viagem foi qual teria sido seu destino caso não tivesse migrado para o Rio de Janeiro. No quarto dia de sua estadia na Paraíba concluiu que se não fosse a iniciativa da mãe estaria “puxando cobra para os pés”, expressão usada para designar o trabalho de roçar a plantação com uma enxada. Imaginou ainda que se estivesse aposentado compraria uma casinha na cidade.

O quarto e último dia em Pirpirituba foi marcado pelo reencontro com parentes. Chegou até eles depois que um morador curioso perguntou porque ele estava fotografando Pirpirituba. Depois quis saber de onde Severino era e se ele tinha parentes ali. Quando ouviu a história, apontou a casa de uma tia e dois primos do fotógrafo por parte de pai.

Ciço Pessoa estava em casa, preparando comida. Diniz, forrozeiro, estava ancho no mundo fazendo apresentações no período junino. Tia Maria e o marido dela, Antônio Lúcio, prosearam com o visitante. Trocaram informações sobre a família, sobre os colegas de escola e sobre o Sítio Pacova, cujo nome se refere a uma fruta mais conhecida como banana-da-terra.

O fotógrafo ficou sabendo que a casa onde nasceu e morou ainda existia. Ele tinha a intenção de ir até lá, mas ninguém estava disponível para acompanhá-lo. Além disso, a conversa tomou mais tempo que devia e por pouco não perdeu a hora de refazer o caminho da migração para o Rio de Janeiro.

Severino prometeu a si próprio retornar este ano para fazer a foto do céu do povoado, deitado no mesmo lajedo de onde admirava as estrelas. E, quem sabe, voltar à meninez por um instante.

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Pé de página

[1] Uma légua equivale a seis quilômetros.

[2] Paredão é definido como qualquer aparato de som automotivo potente, instalado ou acoplado nos porta-malas dos veículos.

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Para conhecer um pouco mais sobre o Brejo Paraibano:

Exposição fotográfica de Severino Silva

O brilho do céu de Pirpirituba – capítulo I

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Crédito da foto principal: Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário –  Severino Silva

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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