Prazeres, a pescadora de alto mar

Paulo Oliveira e Thomas Bauer (*)

De segunda a sexta-feira, Maria dos Prazeres, 52 anos, sai de casa às duas horas da manhã para pescar com o marido Florionaldo Freire. Eles costumam retornar por volta das 11 horas com até 15 quilos de pescado.

Tem dias que o casal puxa “aquele mundo de rede” e não traz nada. Nessas ocasiões, Maria chora. A lembrança do dia em que trouxe 150 quilos de peixes serra e bonito, há quatro anos, é que anima atentar a sorte no dia seguinte.

Foi como uma das raríssimas pescadoras de alto mar que Maria conseguiu comprar a casa onde mora, em Pirangi, município de Parnamirim, região metropolitana de Natal (RN); uma jangada de fibra de vidro que batizou com seu nome (Prazeres); e criar três filhas, hoje com 30, 28 e 26 anos.

 

Peixe para vender na praia.  Foto: Mariana S. Freire

No entanto, desde que em 2019, a costa nordestina e da região sudeste do Brasil foi atingida por um derramamento de petróleo – o maior crime ambiental em extensão do país – que dias de fartura intensa não se repetiram.

Para garantir o pagamento dos boletos e a compra de um botijão mensal de gás, a pescadora se transformou em cozinheira aos finais de semana. Ela vende ginga com tapioca e peixes grandes fritos como o aricó (vermelho), tainha e guarajuba, nas areias da praia do Cotovelo.

As gingas são filhotes de sardinhas de duas espécies, a azul (ou bandeira) e a cascuda, capturados com sete centímetros de comprimento, quatro a menos do que atingem na fase adulta. O prato típico foi declarado patrimônio cultural imaterial potiguar – para ler mais sobre o saboroso alimento, clique aqui.

Maria dos Prazeres também é muito conhecida nas imediações da Barreira do Inferno, base da Força Aérea Brasileira (FAB). A alegria contagiante e o carrinho de mão limpo e forrado para transportar os alimentos são dois chamarizes.

“Sempre fui animada. Na praia, coloco coco verde na cabeça e começo a brincar com as pessoas. Elas tiram fotos e postam nas redes sociais. Eu ganho muitas coisas na praia, muita gente me ajuda dando um dinheirinho, sem eu pedir. Elas também compram os meus peixes para comer” – conta.

A VIDA DE ACORDO COM AS MARÉS

Foi com o pai, aos oito anos, que Maria começou a pescar em um rio, de onde tirava camarão, pilato (tilápia) e tapaca.  Mais tarde, no início da fase adulta, começou a namorar Florionaldo. Um dia foi convidada para pescar peixe-voador em uma jangada. E, pela primeira vez, se afastou do litoral:

“Eu estava com 20 anos e aceitei. Quase levei uma pisa da minha mãe. Nesse dia, pegamos mais de mil peixes-voadores e sete dourados. Só não apanhei porque ela desistiu quando viu o resultado da pescaria” – ri ao lembrar.

Despachada, a jovem pescadora arrumou umas caixas, comprou gelo e foi vender o pescado. A iniciativa deu certo. Prazeres, que estudou até a quarta série, aprendeu a ler, mas só sabe escrever o nome, passou depender das marés – nem sempre de sorte – para se sustentar.

A atual vice-presidente da colônia Z-56 (Ponta de Pirangi) lembra que estava pescando quando o petróleo começou a chegar às praias do Rio Grande do Norte, em 2019. Ao recolher a rede, viu que haviam pedaços de piche e os peixes estavam sujos de óleo. Ela ainda não sabia que ficaria mais 365 dias sem trabalhar e que a renda de sua família despencaria, mesmo depois de retomada das atividades. Isto porque os fregueses, incluindo os donos de restaurantes, temiam que o pescado estivesse contaminado.

“Ninguém queria comprar. A gente sofreu. Passamos fome, não vou mentir. Só não foi pior porque eram uns ajudando aos outros. Eu não sou de pedir nada para ninguém. Ou eu compro fiado e pago quando vendo o meu peixe ou troco o pescado por feijão, arroz, jerimum e macaxeira” – recorda.

Outra lembrança ruim é a mortandade de golfinhos e tartarugas:

“A gente via cada bichona morta depois do vazamento. Acho que engoliam óleo e morriam” – acredita.

Ano passado, a pescadora potiguar sofreu um acidente ao pular de uma jangada para outra. Ela perdeu o equilíbrio e bateu com as costelas e as pernas na embarcação. Um nódulo nasceu no local da pancada, obrigando-a a operar a perna até hoje dolorida. Foi mais um ano no “estaleiro”. Dessa vez, porém, um de seus cunhados a substituiu. E os remédios foram doados por uma universidade.

A vida de uma pescadora não é fácil. Além dos riscos inerentes à profissão, elas sofrem preconceito e não são poupadas de ameaças feitas por pescadores clandestinos. Prazeres contou que alguns colegas só referiam a ela com uma gíria que significa alguma coisa incômoda.

O apelido maldoso foi colocado por um colega da Praia de Pirangi, após Florionaldo a prender com uma corda para evitar que ela caísse no mar em um dia de mar revolto.

O casal também já recebeu muitas ameaças de pescadores clandestinos de outro estado, que possuem embarcações maiores e equipamentos não permitidos.

“A gente chamava de ‘barco fantasma’ porque eles pescam mais à noite para ninguém ver” – explica.

Os ilegais andam armados com metralhadoras para afastar concorrentes e têm como prática passar por cima das redes dos pescadores artesanais. Certa vez, um amigo relatou para Florionaldo que ouviu dois homens falarem que iriam matar o casal, mas antes estuprariam a mulher. Maria passou a se esconder. O mesmo fazia com o pescado para não ser roubada.

A FISCALIZAÇÃO, O SEMINÁRIO E O FUTURO

Maria dos Prazeres, durante a entrevista, revelou o rigor da fiscalização dos pescadores artesanais pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Ela contou que agentes da autarquia já foram em sua casa para verificar se ela era mesmo uma profissional da pesca.

De acordo com o relato, eles chegaram em uma caminhonete preta no momento em que ela voltava do mar, trazendo um galão com peixes no ombro. Ela reproduz o diálogo:

“Onde mora dona Prazeres?”

“Está falando com ela, moço,”

“É a senhora que é pescadora.”

“Olha a minha a pesca aqui” – diz, mostrando o galão.

“Por quanto a senhora vende o peixe?”

Depois de saber o valor, os fiscais compraram um sargo grande e foram embora.

A inspeção das embarcações também é rigorosa e acontece quando os profissionais renovam o documento de identificação.

“Eles medem e verificam a jangada todinha” – diz.

Maria participa de uma das místicas do seminário. Foto: Thomas Bauer/ CPP-H3000

Ao participar do seminário “Mar de Luta: Três anos de resistência ao crime do petróleo”, onde os palestrantes deixam claro a falta de transparência sobre o derramamento de óleo e falhas na fiscalização e monitoramento de grandes embarcações, Maria espera que os danos causados aos profissionais sejam mitigados.

O pagamento de reparações, a redução da burocracia para a concessão de documentos e a contenção de novos crimes ambientais é o esperado.

Dona Maria pretende continuar na pesca até se aposentar daqui a três anos. Ela diz que não vai parar as atividades completamente:

“Não vou desistir de uma vez. Vou pescar para comer um peixe, para não comprar. É o que Deus manda pra gente. Frango e carne a gente come, mas está tudo caro” – compara.

A última pergunta:

Em que momento os pescadores(as) são mais felizes?

“É quando a gente chega em casa, toma um banho, faz um pirão de peixe e enche o bucho. Tem alguns que vão tomar uma, mas eu não. É melhor ter saúde” – diz Maria dos Prazeres, que controla a hipertensão, diabetes e dores crônica nas mãos com medicamentos.

 

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(*) Esta série foi produzida por Meus Sertões em parceria com o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP).

As fotos do alto da página e a de Maria preparando comida são de Mariana S. Freire, filha da pescadora.

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Leia todas as reportagens sobre pescadores artesanais

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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