‘O piche descia que nem cobra dentro d’água’

Paulo Oliveira e Thomas Bauer (*)

O pescador Edílson Xavier da Silva, 62 anos, nativo de Tamandaré, a 70 quilômetros do porto de Suape, em Pernambuco, relata o que ocorreu no dia do crime do petróleo (30 de agosto de 2019). Ele compara o serpentear do óleo (ou piche, como chama) ao chegar à praia e ao manguezal com uma cobra.  Edílson denuncia o descaso das autoridades e se queixa do péssimo atendimento de um médico de hospital público, o qual foi consultar por causa dos problemas de saúde que contraiu durante a limpeza da praia.

Onde o senhor estava e quem o acionou para tentar localizar as manchas de petróleo, em 2019?

A gente tava em casa e fomos procurados pelo presidente da colônia, que também é pescador. Arrumamos três barcos: o meu, o da colônia e o de outro pescador. Nós percorremos 16 quilômetros em mar aberto, de barra à barra, e não encontramos óleo. Quando foi mais ou  menos 12h30min, recebi um telefonema dizendo para eu voltar porque o óleo já estava na praia.

Por onde começou o vazamento?

Começou primeiro na Lagoa e foi correndo de praia a praia. Calculo que levou cinco dias para chegar em Tamandaré.

O governo tomou providências para conter o óleo?

Não. Quando eles vieram para fazer a contenção nós já tínhamos limpado a praia.

Quem limpou a praia?

Os pescadores e os moradores.

Em quanto tempo vocês limparam a praia?

Três dias.

Vocês usaram algum tipo de equipamento?

Nenhum. Usamos pá e as mãos para ajuntar tudo. Porque na nossa praia não tem pedra. É tudo areia. Aí nós íamos juntando e a máquina vinha apanhando e jogava o óleo na caçamba. Recolhemos uma faixa de 50 tonelada de piche.

O petróleo atingiu o manguezal?

O manguezal até hoje tem piche.

Quais foram as consequências de o petróleo ter atingido o manguezal?

Matou tudo. Matou os marisco, os caranguejos, os aratus. O nosso rio é berçário do cavalo marinho. Aquilo tudo acabou. E a gente ficou a deus dará. O padre Arlindo, da paróquia de Tamandaré, tomou a iniciativa de ir em cada armazém, cada construção, pedir uma caçamba e uma máquina para ajudar na limpeza.

A partir desse crime, como ficou a vida dos pescadores e pescadoras?

Ficou ruim porque ninguém podia pescar. Ninguém podia vender o produto que tinha no freezer. As marisqueiras não podiam ir pro mangue pegar seus mariscos. Porque se pegasse não vendia. Disseram logo que o marisco e o peixe estavam contaminados. A gente ia fazer o quê?

Nunca fizeram nenhum tipo de exame para ver se o peixe estava realmente contaminado?

Fizeram depois de dois, três meses. Quem fez foi o IPA. Lá tem um menino lá que é o Pedro do IPA, foi elequem fez. Pegou todos os peixe assim: um quilo de ostra, um quilo de marisco, duas tainhas, dois serrass, umas postas de peixes maiores. Então ele ajuntou e levou no isopor para o Recife, onde fez todas as análises.

Qual foi o resultado?

Nada. Um tudo limpo.

Vocês fizeram alguma campanha para mostrar ao povo que não havia contaminação?

Sim. Fizemos caldeirada de marisco e de sururu. Também fritamos pexie para poder vender nossos produtos. Mas mesmo assim o povo continuou desconfiado.

 Até hoje existe essa desconfiança?

Tá. Até hoje tem essa desconfiança ainda.

É com relação às questões de saúde?

Teve várias pessoas lá que ficaram tontas, outras tiveram queimaduras. Eu mesmo passei 20 dias sem andar. As pernas ficaram todas pretas, queimadas.

Mas o senhor chegou a entrar na água quando tentou localizar o petróleo ou foi na limpeza que o senhor queimou?

Eu fiquei em cima do barco. O mestre do barco aprumando o barco e eu com um balde de um lado  pegando o piche e jogando dentro de um tambor. O outro menino, do outro lado da embarcação, fazia o mesmo. A gente chegou a encher o tambor com 200 litros de petróleo.

Por quanto tempo o senhor ficou sem trabalhar por causa das queimaduras?

Uns 45 dias.

Edílson relata que foi destratado por médico. Foto: Thomas Bauer/CPP-H3000

Como o senhor se manteve neste período?

Minha esposa é aposentada e temos uma barraquinha, onde vendemos comida e bebida. A gente não paga aluguel de casa. Graças a isso, minha família conseguiu se manter.

Quantas pessoas chegaram a ter problemas de saúde na comunidade?

Lá teve uma menina que foi pra praia também ajudar. Ela se queimou, mas foi pouco. Outras pessoa que ficaram com as vistas e os rostos vermelhos.

O senhor chegou a procurar algum tipo de atendimento médico?

Eu não procurei porque ia me dar mais desânimo. O SUS em outros cantos pode funcionar, mas para cá pra não funciona. Você pode chegar morrendo. Vão marcar hoje uma consulta para daqui a três meses.

Como o senhor se curou?

Dias depois fui pro hospital com a minha filha na primeira vez porque não aguentava de dor. O médico olhou pra mim e disse: “A sua doença eu sei qual é”. Eu disse que era bom porque o problema tinha sido descoberto e que tinha a ver com o petróleo. Ele respondeu que o meu problema era “excesso de maconha”. Cheguei em casa, olhei pra a minha filha e contei para minha esposa. Ela perguntou se eu não tinha ouvido mal. Voltei de novo hospital e o mesmo médico falou: “Eu já te disse para parar de fumar maconha”

Ele não lhe examinou, não mandou fazer nenhum exame?

Não. Ele mandou eu ir embora. Eu tive que sair pra não arrumar confusão. Se eu agredisse ele ou xingasse, quem ia preso era eu. Aí minha filha me tirou do consultório e me levou para casa de um enfermeiro conhecido da comunidade.

 O que o enfermeiro determinou?

Ele perguntou se eu tinha coragem de fazer o que ele mandasse. Eu disse que sim. Ele mandou eu comprar comprar 14 doses de benzetacil (antibiótico) e tomar uma dia sim, dia não, por sete dias. Depois parar por três dias. E voltar a aplicar a injeção da mesma forma até acabar. Também tomei um remédio caseiro e a queimadura foi secando e as pernas desincharam. Aí fiquei bom.

O senhor nunca pensou em dar uma queixa desse médico?

Não. Mandaram eu dar queixa, mas eu não quis porque a nossa polícia pernambucana é muito violenta. O médico é um camarada de dinheiro. Se eu fosse pra lá, ia complicar a minha vida. Eu nasci na cidade de Barreiro. Cheguei para Tamandaré com seis anos e vou fazer 63. Ia acabar sendo desmoralizado. Além disso, a polícia lá não brinca, bate.

Quanto tempo depois o senhor voltou a trabalhar?

Depois de dois meses. Para nosso barzinho funcionar, os meninos começaram a pescar, enquanto eu me recuperava.

Hoje o senhor pesca normalmente?

Normal, normal, normal, normal. Agora só que eu fiquei meio agitado. Isso aqui (mostra as pernas e braços) queimou tudo só de levar o petróleo para jogar no tambor. No sol, as pelotas derretiam todinha e ficava azulada. Nossas vistas tremiam só de olhar.

Vocês limparam a praia sem nenhum equipamento de segurança?

Quando chegaram as luvas a gente tinha tirado o grosso da praia. Aí foi que chegou, eu não sei se era o Exército ou a Marinha. Eles estavam todo equipado. Proibiram os pescadores de limpar o mangue, dizendo que o setor era deles.

Quanto tempo eles passaram na comunidade?

Eles passaram de 2 a 3 meses limpando o mangue. E não limparam toda ainda.

E continuam lá?

Não. Agora a gente como o filho natural de lá, de vez em quanto  acha aquele bolão de petróleo na areia. São pedações de 200, 300 gramas, bem duros.

E o senhor acredita que o acidente foi causado por quem?

Não tem navio que joga uma quantidade de óleo desse tamanho. Eu acho que foi algum poço de petróleo que vazou.

Quantos poços têm na costa do Tamandaré?

Na nossa costa tem um. Outro, em Maragogi.

Eles estão funcionando?

Não. Estão esperando instalar a plataforma. Há tempos um veranista disse que em oito, dez anos, não existiria mais barcos de pesca aqui. Perguntei porque ele tinha dido aquilo. A resposta foi que estavam colocando uma plataforma aqui e quando ela começasse a funcionar, os pescadores seriam expulsos.

O senhor tem plano de mudar de atividade?

Tenho. Planejo vender meu barco.

E o senhor pretende fazer o que depois?

Estou tentando me aposentar. E depois fazer outra coisa.

Eu não vai sentir falta do mar?

Esse é o motivo de eu não ter vendido ainda. Eu vou sentir muita falta. Eu tenho muito material, muitas redes. Depois eu vendo e me faz falta.

Foi a primeira vez que apareceu petróleo na praia e no manguezal, em 2019?

Não. Lá sempre aparecia um pouquinho. Você passava de um canto para outro e não melava os pés. Mas desta vez (2019) foi demais. O píche descia que nem uma cobra dentro d’água.Foi tanto petróleo que a prefeitura cavou, mandou cavar uma levada, onde jogou tudo. Depois, veio uma “enchedeira” e jogou o que estava no buraco em caçambas e em um caminhão-tanque e levou tudo embora.

–*–*–

(*) Esta série de reportagem foi produzida em parceria com a Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP)

–*–*–

Leia todas as reportagens sobre pescadores artesanais

O naufrágio e as 2.156 ondas

O descaso dos governos com os pescadores artesanais

Prazeres, a pescadora de alto mar

As dores de Renilda

Os danos à saúde dos pescadores

A memória do crime do petróleo

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

follow me
Compartilhe esta publicação:
Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sites parceiros
Destaques
Editorial

Editorial