Uma experiência fascinante: “Umburana e Duas Passagens” – capítulo VI

Essa é uma história comprida, dessas que nossas avós contavam quando mal anoitecia e a criançada sentava em torno dela na varanda. Quem pensa que esse caso se passou há muito tempo se engana, pois em Duas Passagens, na Chapada Diamantina, a energia elétrica só chegou depois dos anos 2000. O que vou narrar agora tem a ver com uma menina sertaneja que enfrentou muitos desafios para atingir seu objetivo.  Vai ter muitas idas e vindas antes de chegar ao final. Preste atenção!

Ah! Outra coisa, essa história é como se fosse um umbuzeiro: nós tratamos dos frutos nos capítulos anteriores, mas agora vamos falar de algo que é ao mesmo tempo semente e raiz. Umburana é um povoado da cidade de Seabra que tem o mesmo nome de uma árvore medicinal, cujas folhas são usadas para tratamento de asma, fraqueza física, cólicas intestinais e uterinas, febre, gripe, hemorragias, inflamação, resfriado e tosse. Ele fica há seis quilômetros de Duas Passagens.

Era lá que morava a parteira, rezadeira, lavradora e líder comunitária Maria Rosa de Jesus, a Iaiá Lia. Mulher negra, que ficou viúva antes dos 30 anos com quatro filhos para criar, Iaiá todo ano organizava uma festa na passagem de dezembro para janeiro para celebrar o final do ano e o início das comemorações dos Santos Reis.

Ia gente do povoado e de fora dele, reiseiros e o pessoal das comunidades quilombola ao redor, onde ela também fazia partos a qualquer hora. Depois das rezas católicas tinha música, dança e comida farta. Iaiá Lia puxava cantorias; os irmãos delas tocavam pandeiro e sanfona. Era um momento mágico.

A líder comunitária morreu em 1987, um ano e cinco meses depois da bisneta, Maria como ela, nascer em Duas Passagens, povoado pertencente a Seabra. No entanto, a localidade fica mais próxima (18,5 quilômetros) do município de Boninal.

Boa parte da infância da menina foi passada no rio Cochó, onde ela tomava banhos e ajudava a mãe a lavar pratos. Também foi marcada por histórias contadas por Maria Célia dos Santos Gonçalves e Raimundo Gonçalves, o Coco Duro, mãe e avô da garotinha. Aos poucos, Maria Célia foi repassando para a filha as memórias de Iaiá Lia, personagem que será fundamental na vida de Isabel.

A criança aprendeu que Iaiá era a forma como se chamavam as avós na região e Lia era uma abreviação de Maria. Alguns a chamavam de Mãe Lia. Soube também de outra iaiá, Honorina, que morreu lavando pratos na lagoa da Umburana. Enquanto a mãe contava histórias da família ao cair da tarde, o vaqueiro Raimundo relatava as histórias sobre o transporte de gado para o Vale do Capão, Guiné e Vale do Pati, territórios da Chapada Diamantina conhecidos como Geraes, onde havia alimento para os animais em tempo de seca.

Os casos eram intercalados com narrativas sobre lugares que brilhavam e eram protegidos por encantados. O brilho vinha dos muitos diamantes existentes na região. Outro ser fantástico que povoava os “causos” era o Lubi, nome que davam aos lobisomens. Os mais velhos consideravam as histórias reais, a imaginação de Isabel ia longe.

Maria Célia, 54 anos, só estudou até a quarta série. Na Umburana, onde ela cresceu, era o máximo de estudo que alguém podia ter. Se quisesse seguir adiante tinha que se mudar. A mãe de Isabel também trabalhou duro com o marido José Gonçalves na lavoura de fumo, mas não deixou a menina seguir o caminho dela, sempre incentivando-a a estudar.

Isabel e seus dois irmãos cursaram as primeiras séries na Escolinha Rural, que adotava o sistema multisseriado: a única professora dava aulas para todas as crianças do povoado ao mesmo tempo, independentemente da idade que tinham e da série que frequentavam. Quando concluiu a quarta série, a menina passou a frequentar a escola do povoado de Velame, a seis quilômetros de distância. Diariamente, gastava cerca de duas horas a pé para ir estudar e voltar. Não havia transporte escolar na época.

O término do ensino fundamental coincidiu com a mudança da família para outra localidade: Olhos d’ Água, a quatro quilômetros do centro de Seabra, onde a adolescente concluiu o ensino médio. Era o momento de definir o rumo profissional.

Apesar de ser criada ouvindo histórias e ficar encantada com elas, o primeiro contato de Maria Isabel Gonçalves com um livro foi na escolinha rural. Ela ficou encantada ao descobrir o livro didático. Como não tinha outras publicações, acordava cedo, abria a janela e aproveitava a luz do dia – lembra que não havia luz elétrica nas Duas Passagens? – para ficar lendo e relendo o livreto. A leitura se transformou em paixão.

Logo, passou a gostar de escrever. Os primeiros textos foram poemas focados nas memórias de infância e na morte do Rio Cochó, hoje seco. Jornalismo ou letras pareciam as carreiras mais apropriadas. Passou para duas faculdades diferentes aos 17 anos. A de jornalismo, na capital, e a de letras, no campus da Universidade Estadual da Bahia, em Seabra.

O Programa Universidade para Todos (Prouni) do governo federal permitiu Isabel se inscrever na Faculdade 2 de Julho, em Salvador. Entre março e agosto cursou o primeiro período, conheceu o jornal com maior prestígio na cidade e entrevistou um de seus jornalistas. No entanto, por falta de recursos e de moradia retornou a Seabra. Lá, se matriculou na universidade estadual, pois uma das poucas oportunidades para jovens no interior era o curso de formação de professores.

Em 2005, surgiu um concurso para professor que não exigia curso superior. Maria Isabel foi aprovada para lecionar filosofia e assinou contrato temporário de dois anos, prorrogáveis por mais dois. Ela teria que conciliar o emprego com os estudos à tarde. Ela ia a pé, sob o sol a pino. Não tinha transporte, não tinha bolsa e os livros custavam caro. A mãe recebia auxílio do Bolsa Família e continuava a trabalhar com o marido na lavoura de tabaco.

Quando foi convocada pela secretaria de educação descobriu que teria de dar aula de química, pois era a vaga disponível. Com 20 anos, sem disposição para enfrentar uma sala de aula para doutrinar os alunos, Maria Isabel ficou só um mês no emprego. Estava tão desestimulada que sequer trancou (interrompeu) o curso, o que permitiria a volta em até dois anos. Simplesmente desistiu de tudo. A árvore estava murchando.

 

FIM DA PRIMEIRA PARTE – CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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