Apostolado diferenciado – capítulo III

Fã de filmes clássicos em preto e branco, o padre Pier Antonio Miglio, recomenda entusiasticamente “Uma voz nas sombras” (“Lilies of the field” – 1963), que fez de Sidney Poitier o primeiro negro a ganhar o Oscar de melhor ator. Entusiasmado, ele resume a obra como um lindo filme “sobre esse negócio de padre e igreja”, apesar de ser centrado na história de freiras e de um trabalhador evangélico (Poitier) que ajuda as religiosas a construírem uma capela:

“O padre aparece muito pouco no filme, mas sobretudo no final quando vai inaugurar a igreja. Ele diz que sonhava, quando foi ordenado, em ser pároco de uma rica basílica, com os paramentos, os anéis nos dedos, o coral, o órgão…”

Padre Antônio na casa de hóspedes das associações. Foto: Severino Silva
Padre Antonio na casa de hóspedes das associações. Foto: Severino Silva

A voz de Antônio fica embargada. Tomado pela emoção, ele conclui:

“Mas foi depois que viu uma igreja construída pelo povo com as próprias mãos que ele descobriu o valor de ser padre.”

Acreditar na força e na organização, principalmente dos mais pobres, e ajudá-los a transformar a realidade socioeconômica do semiárido faz parte da missão desse italiano nascido em Bellinzago, na província de Novara. Antonio, recém recuperado de Covid-19, explica que sua cidade se manteve isolada na Idade Média por causa do terreno infértil e pedregoso.

Filho de Marina e Pedro Miglio, operários de uma fábrica de tecelagem, dividia o tempo entre estudos, brincadeiras e pequenos trabalhos na roça, ajudando os avós maternos.

Antonio e o único irmão cresceram em ambiente cristão, culturalmente ligado à caridade e ao voluntariado. Segundo ele, 90% dos aposentados de Bellinzago se engajam em serviços humanitários, culturais e ambientais, ligados à igreja ou não.

“Eu entrei no seminário quando tinha de 11 para 12 anos. Isso era normal na minha cidade. Era o jeito de ter escola e formação de qualidade a custo baixo. Pagar o colégio particular dos salesianos ou jesuítas era muito caro. Só as famílias abastadas podiam se permitir. Muito dos meus colegas saíram depois do segundo grau, não era obrigado a prosseguir. Eu continuei porque me senti muito bem nisso” – conta.

Ordenado em 1978, Antonio foi enviado para o Brasil no ano seguinte. No seminário, ele havia se colocado à disposição para servir as igrejas mais necessitadas e carentes de religiosos. A regra era passar cinco anos na Itália, se integrando à diocese, antes de ser designado para outro país. A decisão de dois padres – um italiano e um brasileiro – de abandonar o celibato apressou a vinda de Antonio Miglio para Paulo Afonso, no sertão baiano.

Em outubro de 1979, o jovem novarese, foi recepcionado por um padre cansado, que durante oito meses cuidou sozinho das paróquias de Glória e Paulo Afonso. O colega fez algumas apresentações e o levou até onde era possível, depois tirou licença para descansar.

“Peguei logo uma paróquia e fiquei tentando me virar. As pessoas queriam me ajudar. Eram elas que elaboravam a homilia. Eu mal sabia ler a missa em português” – recorda.

No seminário, Antonio optou pelo curso de espanhol, embora o Brasil já estivesse em seu radar. A escolha do idioma estava baseada em duas convicções: queria aprender português com o sotaque regional e acreditava que ter uma língua a mais não faria mal. No início, teve imensa dificuldade para se comunicar, mas os fiéis encontraram uma explicação: “ele era paulista”. O padre, no entanto, sabia que seria gringo por muito tempo.

Os trabalhos em Paulo Afonso estavam focados na periferia da cidade e na zona rural, onde fazia celebrações e ajudava a formar lideranças locais. Ele também se aproximou dos ciganos, que costumavam ser maltratados em outras paróquias, e dos indígenas da comunidade do Brejo do Burgo, envolvidos em conflitos internos e disputa territorial.

O fim das obras no complexo de hidrelétricas de Paulo Afonso gerou imenso problema social. Os operários – no auge da construção chegaram a 30 mil – partiram em busca de trabalho em outros estados, abandonando mulheres e filhos. Sem renda, sem saber onde localizar os maridos que constituíam outra família e sem acesso à Justiça, as “viúvas brancas”, como ficaram conhecidas, não tinham como sustentar a si e às crianças. A coisa ficou séria.

A Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) e uma igreja evangélica tinham montado, nos anos 70, oficinas para formar artesãs, mas o projeto não foi adiante. A diocese de Paulo Afonso decidiu assumir o trabalho para proporcionar renda às desamparadas e contratou a contabilista e especialista em associativismo Ivone Lisboa para ser coordenadora da associação informal. Ela voltaria a trabalhar com padre Antonio, em 2002, na criação de pisciculturas.

Padre Antônio e Ivone Lisboa. Foto: Severino Silva.
Padre Antonio e Ivone Foto: Severino Silva.

O grupo de “viúvas brancas” chegou a ter 400 mulheres. Noventa por cento delas produziam peças de renda renascença porque muitas tinham vindo de Pesqueira (PE), onde se destaca a técnica têxtil criada em Veneza, na Itália, no século 16, e trazida para o Nordeste pelos portugueses.

O projeto capitaneado pelo padre e por Ivone deu um salto de qualidade e passou a ser vendido no exterior quando recrutou uma desenhista para criar padrões exclusivos de rendas. Hoje, pelo menos dez mulheres sobrevivem desta arte. Ano passado, um luxuoso restaurante italiano encomendou 110 toalhas com bicos de renascença para substituir as que foram feitas pelas mesmas fornecedoras há uma década.

“NUNCA BRIGUE COM PADRES”

Padre Antonio lembra que há 40 anos era comum os sertanejos portarem armas. Antes de começar a missa, os fiéis colocavam revólveres, espingardas e facões nos parapeitos das janelas. Isto acontecia principalmente na zona rural onde o grupo escolar servia de igreja. No fim da cerimônia colocavam o armamento nos coldres e nas bainhas de couro. De acordo com o religioso, andar armado era um fator cultural, que vinha do tempo do cangaço.

Foi em Paulo Afonso que padre Antonio, ex-praticante de decatlo, aprendeu a atirar. Um dia, acompanhando trabalhadores que faziam obra em uma ilha no rio São Francisco, resolveu testar a pontaria. Pediu para um dos operários atirar uma lata para o alto e disparou, furando o alvo.

Em seguida, um colega, que logo se tornou bispo, fez o mesmo. Só que a lata caiu no chão sem rodopiar. Antonio e os trabalhadores pensaram ele tinha errado o tiro, mas quando um deles viu que a lata estava sem o fundo foi criada a máxima que se espalhou na região: “Nunca pegue briga com os padres”.

A transferência para a diocese de Floresta, em Pernambuco, aconteceu em 1992. A primeira paróquia para a qual foi designado foi a da nova Petrolândia. A cidade antiga tinha sido inundada quatro anos antes pelo lago da Usina Hidrelétrica de Itaparica, depois rebatizada com o nome do cantor e compositor Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”.

Padre Antônio a caminho das associações de piscicultores formadas só por mulheres. Foto: Severino Silva
Padre Antonio a caminho das associações  formadas por mulheres. Foto: Severino Silva

Uma de suas principais ações foi montar uma rádio comunitária de baixo custo, com uma equipe de três pessoas: ele, uma funcionária e um voluntário. Os comunicadores populares se revezavam das 6 horas da manhã às 8 horas da noite, mandando recados de moradores para parentes e vizinhos, reproduzindo mensagens do papa e tocando música gospel. A boa audiência não impediu que rádio fosse fechada pela Polícia Federal, após uma denúncia anônima.

Na segunda metade dos anos 1990, Jatobá se emancipou de Petrolândia. Antonio assumiu a paróquia do novo município, que crescia rapidamente sem infraestrutura adequada. Não havia saneamento, nem água encanada. Os seis chafarizes da cidade logo ficaram obsoletos.

A preocupação com falta de empregos e a penúria dos moradores fez padre Antonio e dom Adriano Ciocca Vasino, então bispo de Floresta e atualmente na prelazia de São Félix do Araguaia (MT), se mobilizarem para implantar, em 2002, a primeira das 10 associações de piscicultores da região.

Em suas andanças por Paulo Afonso e por cidades pernambucanas, Padre Antonio conheceu frei Damião de Bozzano (1898-1997), religioso italiano que atuou no Nordeste no século 20. Ele atraía multidões e era considerado santo. Recentemente, o Papa Francisco decidiu conceder o título de venerável ao frade, penúltima etapa do processo de beatificação.

“Tive a sorte de conhecer Frei Damião. Ele não tinha nada a ver com o que o povo dizia dele. Falavam que ele não comia, não pisava no chão e vivia em penitência. Na minha casa, tomava refrigerante e comia biscoitos champanhe. A parte mais humana não tira dele a aura, vamos dizer, de santidade. Ele se dedicava à missão de pregar o que aprendeu por volta de 1930, mas não é verdade que era tradicionalista. Ele fazia três homilias e sempre incluía uma parte mais moderna de Teologia da Libertação e tudo mais” – desmistifica.

Quando Jatobá ganhou a quinta associação de criadores de tilápias, o ex-prefeito de Itacuruba Romero Magalhães pediu ajuda ao bispo de Floresta para ativar as “piscigranjas”, antigo projeto da Chesf que não chegou a ser implantado na localidade de Coité. Com conhecimento de toda cadeia produtiva da criação de peixes, padre Antonio assumiu a paróquia de lá para constituir uma nova associação, em 2007.

De segunda à sexta-feira trabalhava com os piscicultores de Jatobá. Nos fins de semana seguia para Itacuruba nova, mais uma cidade criada para substituir a que foi submersa pelas águas de uma barragem. Lá, participava da montagem da associação dos velhos reassentados do projeto do Coité. Também mergulhado nas atividades da igreja, aprendeu que as atividades de uma paróquia grande e as de uma pequena são iguais. A diferença é que a menor não tem muitos colaboradores.

Pier Antonio Miglio retornou a Petrolândia como administrador da paróquia há quatro anos. Tinha a missão de auxiliar padres estrangeiros e novatos a se adaptarem ao sertão.

Em 2017, passou a se dedicar em tempo integral às associações de Jatobá, o que inclui a participação em seminários e palestras. É um apostolado diferenciado, que incide diretamente nas estruturas sociais.

 

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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2 respostas

  1. Linda reportagem, chorei de rever e viver esse momento é de fazer parte dessa história, é ver meu padre favorito como protagonista da história mais linda da minha vida.obrigada

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