Serra-velho

A partir do depoimento de Sônia Mariz à médica e pesquisadora de cultura popular Helenita Monte de Hollanda, registrado no vídeo acima, Meus Sertões pesquisou um pouco mais sobre esta estranha brincadeira que se espalhou pelo Brasil, principalmente nas regiões Nordeste e Norte, a partir do século 18. Veja o que descobrimos:

O agrimensor e militar paraibano Mario Ferreira de Medeiros nos revela que o “serra-velho” é uma herança portuguesa, cuja origem foi descrita assim no livro “O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis”, de Luís Edmundo:

“Não se pode afirmar, exatamente, como e quando vierem parar no Brasil as folias portuguesas da Serração da Velha. O que se sabe é que as crónicas coloniais do começo do século XVIII, já delas nos falam com entusiasmo, embora sem demasiada frequência.

Eram festas de rua, festas do poviléo (ralé), dos raros sorrisos da cidade infeliz”.

Medeiros diz ainda que no Cancioneiro do Norte, Rodrigues de Carvalho afirma que o folguedo é uma variante das janeiras (cantar as janeiras é uma tradição portuguesa, que consiste no cantar de músicas pelas ruas para anunciar o nascimento de Jesus e desejar feliz ano novo em troca de sobras das festas natalícias). Sendo assim são aceitas as raízes portuguesas.

O militar transcreve ainda trechos da obra de Luís Edmundo:

“Os foliões variavam na sua apresentação luxuosa (…) ou modestamente se serrava, ainda, na indumentária esfarrapada dos pobrezinhos com dois ou três instrumentos (…). O préstito larga ruidosamente ao som das músicas conhecidas e cantadas por todos: Serre-se a velha/ Força no serrote/ Serre-se a velha/ Dentro do pipote.

Seguindo as pegadas dos instrumentistas, vai um estrado tosco, rastefeito ao chão, e que se rola pousado sobre quatro rodas, curtas, mas fortes. No estrado está uma pipa em cujo interior – diz o povo – vai oculta uma velha condenada ao suplício do serrote.

Esta velha tem malícia/ Esta velha vai morrer/ Venha surrar a velha/ Minha gente venha ver”

Conta-se que as mulheres mais velhas ficavam trêmulas diante da passagem do grupo por temer que os brincantes a colocassem no barril para ser serrada também. E o coro continuava

“Serra, serra, serra a velha/ Puxa a serra, serrador/ Que esta velha deu na neta/ Por lhe ouvir falar de amor.

Serra, ai serra! serra a velha/ Puxa – aí! puxa serrador/ Serra a velha – ai, viva a neta/ Que falou falas de amor

Serra! a pipa rija/ Serra! – a velha é má/ Serra! – a neta é bela/ Serra! e serra já.

Que castigo ela merece? / Dizei-me, senhores meus

Serre-se a velha! / Força no serrote! / Serre-se a velha! / Dentro do pipote!”

Medeiros vai além. De acordo com ele, na bibliografia folclórica da Paraíba encontramos no Cancioneiro do Norte, terceira edição, página 84, a seguinte referência ao Serra Velho.

“Pela quaresma é o serra velho: um bando de vadios conduz barricas, serrotes e chocalhos, e às horas mortas estaciona à porta dos velhos mais rabugentos e jarretas, e improvisam versos picarescos, numa algazarra infernal, com exclamações, choros fingidos e tantas outras graçolas, supinamente agressivas a quem já desce os últimos barrancos da encosta da vida”.

Com o tempo, a polícia proíbe o cortejo na Quarta-feira de Trevas, pois era comum que a pândega terminasse com atos de violência, descritos em “O Tambiá de Minha Infância”, de Coriolano de Medeiros (pg. 42)

“Choviam pedradas nas portas e portões, e ouviam-se lamúrias, as serrotagens, o ruído surdo de enxadas a cavacar, enfim toda cerimónia burlesca e ruidosa do serra-velhos, não raras vezes epilogadas em conflitos sangrentos”.

Segundo o autor do artigo, publicado em julho de 2010, a tradição permanecia do litoral ao sertão paraibano, manifestação de caráter ferino e de desapreço, a qual José Lins do Rego fez referência com os conhecidos versos “Serra, serra, serrador/ Serra madeira de Nosso Senhor”.

CASMURROS E RIDICULARIZÁVEIS

O professor Francisco José Alves, do departamento de história da Universidade Federal de Sergipe em artigo sobre o “serra-velha” (ou “serra-velho”, ou “serração da velha”) considera essa “brincadeira” uma evidência de intolerância contra idosas “malcomportadas”. E ressalta que, embora vivamos sob a vigência do Estatuto do Idoso (2003), a manifestação ainda ocorre em diversos locais do Brasil.

O historiador cita o lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira como autor de uma boa discrição sobre a folgança: “brincadeira que se realiza em dois dias da Semana Santa, especialmente, no sábado de aleluia, na qual um grupo de foliões serrava uma tábua como se fosse uma velha entre lamúrias e gritos”. Aurélio ressalva ainda que o costume ocorria fora da quaresma também, à porta de pessoas de pouca popularidade e facilmente ridicularizáveis.

Francisco José passa então a relacionar romances e reportagens que citam a ocorrência do folguedo a partir do século 18. Segundo ele, o serra-velha foi retratado com minúcia pelo escritor Joaquim Manuel de Macêdo, famoso autor de A Moreninha (1844).

Macêdo trata a tradição como um “ritual quaresmal”, cujos integrantes eram “mancebos folgazões”, que simulavam ser índios, africanos ou mouros. Estes jovens conduziam uma barrica sobre um estrado com rodas, cantando e serrando a barrica, que supostamente levava a velha suplicada. No fim do desfile, os brincantes comiam os alimentos guardados na barrica. O cenário era o Rio de Janeiro e se tratava de uma trégua nos rigores da quaresma.

Já o viajante Johan Pohl, que esteve no Brasil entre 1817 e 1821, se deparou com o ritual em Goiás, em abril de 1819. Na variante goiana, havia um testamento da velha lido em voz alta, no qual os pecados da vítima eram censurados. A velha era representada por uma boneca de palha, que depois era serrada e queimada. O viajante destaca ainda que parentes da idosa representada pela boneca reagiam violentamente e o rito sempre acabava em pancadaria.

A partir daí, o pesquisador relaciona notícias publicadas pelos jornais oitocentistas Brasil afora, incluindo a nota do diário gaúcho O Rio Grandense, registrando que a brincadeira era realizada no carnaval e não na quaresma.

A seguir, enumera notícias publicadas em jornais de Recife (PE), Maceió (AL) e Ouro Preto (MG). O Jornal do Recife lastima que em 1879 ainda se realize este “inaproveitável divertimento” e narra um conflito entre brincantes e a polícia. O Gutemberg, da capital alagoana, é ainda mais enfático na reprovação da brincadeira, definindo-a como “selvagem, nefanda, nojenta e inqualificável”.

Nos fins do século 19, a serração passou a ser punida com multa de cinco mil réis na cidade de Nísia Floresta, no Rio Grande do Norte. Já em A Província, de Recife, noticia que um homem, incomodado com a serração da velha em sua porta, deu um tiro de espingarda, ferindo um dos participantes. O agressor foi preso.

O professor conclui que o rito era um modo de censurar o comportamento desviante de idosos, que eram submetidos à chacota pública para que seus exemplos não fossem seguidos.

SIMPLES ASSIM

De uma forma bem simples, Beto Ramos, de Porto Velho, Rondônia, relata como é o “serra-velho”, no site Gente de Opinião.

Serra velho é uma brincadeira que poucos conhecem hoje. Perto da meia noite, a turma se juntava, saindo para escolher a vítima. Era um vozerio danado pelas ruas. Traziam um serrote, algumas tábuas – para alguns talbas. Dois camaradas acompanhavam somente para chorar. O testamento estava escrito no bolso. Era um barulho infernal, justamente para incomodar o escolhido.

Claro que sempre tomavam umas e outras. Logo, alguém começava a ler com voz chorosa:

“Seu dono da casa, aqui está o seu testamento, e nós gostaríamos de saber para quem o senhor vai deixar a sua filha. O resto da rapaziada começava a chorar e pedir para ele não partir que ainda era muito novo.

O cara do serrote começava a serrar um pedaço de tábua, reco-reco-reco-reco-reco. E dizia para o dono da casa não se preocupar com o caixão, que eles estavam fazendo. Era um alvoroço só.

– E para quem o senhor vai deixar sua dentadura?

– E sua Casa?

– E sua aliança?

– O tempo está passando seu dono da casa.

E o cara do serrote, reco-reco-reco-reco.

– E suas galinhas?

A cada indignação do dono da casa, a turma chorava mais e lamentava a sorte do escolhido.

Claro que o dono da casa dizia cobras e lagartos.

– Cadê o seu relógio, para quem o senhor vai deixar?

E o cara do serrote reco-reco-reco-reco-reco.

– Já está quase pronto o senhor vai se decidir ou não?

Aí chegava o cara com a pá, dizendo que era para cavar o buraco pra enterrar o dono do testamento.

Dentro da casa as filhas choravam. A esposa já preparava chá de cidreira. Nessa hora o dono da casa saia pronto para brigar. Neste momento a turma corria, sorrindo e comemorando muito.

E logo começavam a escolher a próxima vítima.

Nasceu e cresceu numa típica família brasileira. Potiguar, morando na Bahia há vinte anos, é médica de formação e pesquisadora da cultura popular. Nos últimos 10 anos abandonou a sua especialidade em cardiologia e ultrassonografia vascular para atuar como médica da família na Bahia e no Rio Grande do Norte, onde passou a recolher histórias e saberes. Nessa jornada publicou cinco livros.”. No final de 2015 passou temporada no Amazonas recolhendo saberes indígenas.

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