O inspetor de quarteirão

A figura do inspetor de quarteirão surgiu em 1827, cinco anos após a Independência do Brasil, com o objetivo de garantir a lei e a ordem. Era a primeira instância de policiamento. Os inspetores tinham autoridade para efetuar prisões em flagrante, manter a ordem pública e os bons costumes. Em 1832, tiveram suas atividades regulamentadas e passaram também a fazer investigações, dar conselhos e resolver conflitos entre vizinhos,

No sertão, a jurisdição passava de um quarteirão para áreas com mais de 100 quilômetros de extensão. A função começou a perder importância a partir da Constituição de 1988 e foi extinta em vários estados. Já na Bahia existe pelo menos um inspetor de quarteirão até hoje. É Claurindo Barbosa Nascimento, o Seu Dunga, 83 anos. Esta é a história dele.

Portaria nomeia seu Dunga, inspetor de quarteirão de Lajedo Alto, em Iaçu.
O APELIDO

Claurindo nasceu na Fazenda Jurema, em Castro Alves, no dia 12 de agosto de 1934. Quando criança, o pai brincava com ele, balançando-o enquanto repetia “Dunga, Dunga, Dunga”. O apelido pegou. Nascido e criado na roça, seguia lavrando a terra quando ganhou a primeira portaria que o nomeava inspetor de quarteirão aos 24 anos.

“Naquele tempo a gente fazia um juramento perante os chefões e era nomeado. Eu comandava toda região entre Santa Teresinha e Maracás (125 km em linha reta) e Marcionílio de Souza (139 km em linha reta). Andava tudo isso, dependendo de ter uma intimação para levar a um senhor ou para ir na captura de algum elemento” – conta.

Nesse tempo, as terras que possuía ficavam no município de Santa Teresinha. Com a portaria de inspetor passou a acumular a função de subdelegado depois que o coronel PM da reserva Zé Raimundo brigou com seu antecessor, tomou as chaves da delegacia e as deu para Dunga. Ficou assim por 10 anos, sem nunca ter ganho oficialmente o cargo.

Também em 1958, Iaçu se emancipou. E Dunga recebeu das mãos do “coronel” Jove Campos Flores, pai da ex-prefeita de Santa Teresinha Maria Eunice, outra portaria de inspetor de quarteirão com jurisdição no novo município, em Lajedo Alto. Nela, no entanto, seu nome foi alterado para Laurindo.

Em Santa Teresinha, trabalhava subordinado ao delegado Afonso Messias de Figueiredo. Na outra cidade, seu parceiro era o Sargento Ubaldo.

em AÇÃO

Que tipo de bandidos o senhor perseguia naquela época?

Lhe informo agora. Ó, um que eu tenho o prazer de revelar: o maior tema da gente era contra ladrão de bode, quando aparecia algum. E o mais era esse assunto que naquele tempo tinha o nome de desfloramento. Aquele pessoal que mexia com as filhas dos outros. Aí a gente botava na cola. Botava e casava. Cheguei a casar 27 aqui na região. A lei mandava que fizesse isso. ”

Não foram apenas crimes de menor potencial ofensivo e casos que envolviam a moralidade que Dunga teve que enfrentar. Apesar de ter perseguido homicidas, ele diz que teve a sorte de nunca ter dado um tapa em uma pessoa e de não ter apanhado nem levado um tiro. E conta como o assassino do trabalhador Mané Florêncio Santana, o Mané Grande, foi preso.

O matador era “homem direito” no falar do velho inspetor. O crime, ocorrido há 40 anos, no Campo da Raposa, foi motivado porque “Mané usava a mulher de Domingo”. Além de Dunga, o sargento Lielson, que tinha fama de malvado; um soldado “do cão” chamado Humberto; Armerindo e Arnu perseguiam o assassino. Eles receberam a informação de que o matador estava escondido em uma carvoaria, no Curral do Meio.

“Era dia de segunda-feira à noite. Lá tinha 52 fornos. Eu entrei em todos. Encontrei Domingo. Era meu amigo. Eu disse pra ele: “Ói, Domingo, amanhã você sai daqui. Vá se entregar porque não tem saída para você. Voltei e não disse nada. Na terça-feira à meia-noite, ele chegou na minha casa. Levei para o delegado. Ele foi preso na cidade de Iaçu. Passou oito anos e 20 dias na prisão”.

 PRISÕES E CONSELHOS

O senhor lembra quantas pessoas prendeu?

“Lembro. A gente andou fazendo algumas. Não foi muita. Porque eu também não trabalhava sozinho. Tinha ocasião que a gente ia com a polícia. A polícia vai na frente, nos perigos. A gente quase não enfrenta perigo, mas andemo prendendo. Uma vez eu prendi um criminoso por crime de homicídio, outra vez prendi dois ladrões de bode. Eles estavam roubando e eu tenho raiva. Fui autorizado a prender e prendi. Mas nunca amarrei ninguém. Uma algema eu não sei nem usar porque naquele tempo não havia essa algema”

Para o líder comunitário Antônio do Carmo, o Tonho Preto, 68 anos, responsável por nosso encontro com o inspetor de quarteirão, ‘o conselho de seu Dunga é uma prisão”, pois a pessoa que o toma só está livre depois de cumpri-lo

O inspetor de quarteirão calcula que deu “mais de mil conselhos”, o que continua a fazer até hoje.

“Ainda segunda-feira eu dei um conselho. Topei uma menina com uma intimação na mão para Zé da Buti. Ele tem uma filha com ela. Ela veio falar comigo que ia prender ele quarta-feira porque ele não pagava pensão. Eu disse, não vá em Castro Alves, não. A coisa é lá na justiça de Castro Alves. Volte para casa que eu vou chamar Zé da Buti, vou mandar lhe atender. Eu sei que o tempo está ruim, ele é pobre, não é empregado. Ele vai arrumar um dinheiro para você, que eu vou pedir a ele”.

“Pois não, seu Dunga, faça-me esse favor”.

“Deixe comigo. Aí mandei chamar ele. Quando foi sete horas da noite, o Zé chegou. Eu disse: Zé o que passa com você é isso. Vai, arruma um dinheiro daqui para quarta-feira que a menina se acha doente. Ainda disse, você pega uma moto, chega nos seus padrinhos, pega um animal, vende e leva cem ou duzentos reais que ela precisa, coitadinha. Senão você vai para cadeia, fica pior. Você solto pode quebrar pedra, ganhar dinheiro. Você preso, vai para onde? Aí ele foi”.

Dunga diz que seus conselhos salvaram muitas vidas. Garante que o secular cemitério da localidade nunca enterrou uma pessoa assassinada desde que ele passou a ser inspetor de quarteirão.

“Eu não sei quantos eu salvei de morrer por minha posição de viver e a confiança que o povo me tem. Toda camada: grande, pequeno; branco, preto; velho, novo; político (risos), fazendeiro, comerciante. Tudo eu dou conselho”

E foi graças a sua intermediação que o prefeito e o vice de uma cidade da região não se mataram.

A DÍVIDA

Foi desse jeito, na linguagem sertaneja, que o velho inspetor nos contou a história sobre o duelo que evitou:

“Aqui na região um prefeito e um vice, um quis matar o outro. O vice armou de matar o prefeito. Mode conta deles tem uns 40 anos. Aí ficaram na cidade esperando esses homens morrer matado. Eu encontrei com um e disse:  fulano, tá todo mundo esperando o senhor matar fulano. Você vai me atender? Quietar com isso? Como é que a gente fica aqui sem prefeito, sem vice? Você já deu fé o tamanho dessa instança? Que viagem longa essa que você está querendo fazer? Onde é que fica os eleitores? Você quer, eu vou conversar com ele para ele lhe pagar o seu dinheiro. “Ah, você não vai, que ele não paga”. Comigo paga.

Aí eu fui até o prefeito e disse: ô seu fulano, eu topei fulano ali agora. Ele está aqui desde terça-feira lhe procurando para matar. Quando eu topei com o prefeito, um empregado me levou até uma camarinha. Ele estava esperando para caçar uma meia não sei se tinha três dias. Uma meia branca, ele sentado na cama e outro vereador na cabeceira. Tudo com medo. Eu posso declarar que eu vi. Aí ele vai e diz: “Eu não devo a ele”. Deve porque não é possível, o senhor não dever a ele e ele fazer isso. “Ele te disse quanto é que eu devo?”.  Eu digo: Disse. Ele disse que o senhor deve 80 mil. “É mentira dele. Eu tenho uma transação com ele de 40 mil”. Eu digo:  então o senhor deve os 80 porque o senhor acabou de dizer que não deve nada e apareceu 40. E o que o senhor vai fazer para não morrer?

Aí ele tataiou e o que tava de junto eu disse: Fulano, ói, o senhor está vendo a situação. O senhor, que eu nunca vi um cheque do senhor bestando em lugar nenhum, me dê dois cheques desse dinheiro. Ele disse: “Eu dou fulano?” Eu disse, dê. Aí eu peguei os dois cheques e dei na mão do que tava lá com o olho vermelho, com o revólver na mão. Tem coisa que eu não posso falar. Eu vou sartar um ponto, em defesa da nossa sociedade.

E aí eu vim com os cheques. Pronto seu fulano, tá aqui. Vá para casa, guarde esse revólver, pelo amor de Deus. Vá tomar banho. Se quiete com isso. “Pois não Dunga”, ele me respondeu. Graças a Deus, isso tem muitos anos. É meus amigos todos os dois. Todos dois vivos.

Aí tinha outro senhor na mesma cidade, pertinho, vendo a história. Ele me chamou. “Dunga tu resolveu aquele negócio”. Eu digo sim. “Mas nego tu é uma desgraça mesmo, não tem quem possa contigo”. Ele me disse isso. “Tu só vai sair daqui no fim da semana. Tu vai ficar aqui porque do jeito que tu fez pode aparecer outra pior e tu tá aqui”. Eu disse, pronto, eu vou ficar aqui fazendo um favor a vocês. Fiquei sem falar nada a ninguém. Topava com um dava um abraço. Topava outro dava um abraço. Eles é que me procuravam antes de eu ir embora.  Depois eles continuaram na prefeitura juntos. Ficaram ali uns três meses de nhenhenhém, mas depois foi catando, arrumou, e logo, logo ficaram amigos.

O PRESENTE

Alguma vez o senhor foi homenageado ou teve seu trabalho reconhecido?

“Bom, assim para sair em prática ou fazer divulgação, não senhor. Agora eu recebi um presente muito grande. Eu posso lhe dizer que eu sou um homem dos mais acreditados aqui nesta terra, com especialidade na camada pequena que eu sou. É um presente muito grande a confiança que o povo me tem. Pessoa ganhando dinheiro, gasta, não é? Se eu ganho um presente podia ter acabado. E esse presente que Deus me deu do povo eu tenho. Todo mundo me quer. Todo mundo me abraça: grande, pequeno, rico, pobre, branco, preto, velho, criança. A maior parte das crianças da região, de 30 quilômetros para cá, me chama de vovô, de seu Dunga. Vovô Dunga”

Seu Dunga também é agricultor, líder comunitário e rezador. Foto: Paulo Oliveira

O único ressentimento do inspetor de quarteirão é com as autoridades. Dunga diz que pelo estado e pelos municípios estaria pedindo esmola porque nunca lhe deram nada. Sua aposentadoria foi conquistada através do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). Foi da roça que colheu recursos para criar os oito filhos – cinco homens e três mulheres. Conta ainda que foi alertado por um senhor que estavam indenizando os “inspetores velhos”, mas não encontrou ninguém para lhe ajudar com esta questão.

“Deixa ver se eu acho alguma coisa aqui para recordar um pouco do meu passado nessa área que eu estou falando. Dê uma olhadinha aqui, por favor. Tem a nomeação de inspetor de quarteirão. Eu esperava um dia receber um presente de um governo por essa mão de obra. É bonito eu lhe dizer nunca fui processado, nunca fui preso, com um trabalho desse numa terra, num tempo daquele. ”

REZADOR E LÍDER COMUNITÁRIO

A atuação de Dunga no movimento comunitário, iniciada em 1979, aumentou ainda mais seu prestigio. Ele foi fundador e presidente da associação de moradores do local onde mora. Hoje, faz parte do conselho da entidade a qual atribui a conquista de vários benefícios como a construção da ponte de Morro Preto e dos povoados de Suçuarana e Morro das Pedras; a linha de crédito para agricultores familiares do Banco do Nordeste; o recebimento de um trator e uma colheitadeira; o programa de energia solar e a construção de 56 cisternas.

Seu Dunga também é rezador. Reza vento e picada de cobra desde garoto. Os vizinhos dizem que ele sabe fazer antídoto contra o veneno, usando a palma “orelha de onça”.

Bisneto de índia, seus olhos azuis brilham quando fala que o mundo precisa de mais solidariedade. De gente que olhe para o povo.

A família é outro tema que o empolga. Casado desde janeiro de 1960, conta que os filhos são honestos e só conhecem uma delegacia para tirar documento. Fala ainda que nunca deixou de ser inspetor de quarteirão, só parou de perseguir bandidos porque está velho.

O que mudou do tempo em que o senhor foi nomeado para hoje?

“Naquela época não se ganhava nenhum título por literatura, por dizer, doutorado. Era por cargo de confiança. Aí aquela parte foi extinta, depois que pegou a formar muita gente. O senhor sabe a legislação entendeu de não aceitar esse povo todo. Tenho dito que se nós tivéssemos a possibilidade de suas excelências, os juízes de direito, irem nas comunidades dar palestra com o povo, baseado no conhecimento da confiança daquele tempo, eu acho que estava melhor. Mas nós não temos esse poder porque eles (os juízes) não dão a palestra com ninguém. A legislação faz o que ela quer lá, mas nós aqui temos que viver com dignidade, com o respeito em primeiro lugar. O conhecimento não é só literatura. É respeitar as pessoas que merecem, homens e mulheres. O estudo é uma beleza, é a base. Só que o camarada estuda em Salvador, aí ele fica lá, não conhece aqui as veredas. O senhor está me entendendo? É aí que está a diferença.”

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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5 respostas

  1. Venho através deste com o devido respeito solicitar de V. Sª., uma oportunidade de constar no vosso site um resumo da história de vida de meu bisavô que foi Inspetor de Quarteirão nos anos 50, inclusive gostaria que postasse a foto de sua funcional.

    Aguardo retorno por e-mail.

    Sempre tem existir sites como esse para que as histórias sejam sempre eternas e presente no contexto.

  2. boa tarde, estamos elaborando nosso tcc sobre inquerito policial e gostaria de citar quando surgiu os Inspetores Quarteirões, farei menção a sua pág como consulta e também seu nome.
    Desde já agradeço.

    Bia e Bel

    1. Obrigado por nos informar e por citar nossa reportagem. Por favor, nos envie o link do TCC quando estiver pronto.

      Equipe Meus Sertões

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