Cidade submersa

Dos mais de três séculos de história de Rodelas restaram apenas o grande caldeirão de lembranças do seu povo e a saudade, dor que não passa. Há 29 anos, a contragosto, os rodelenses protagonizaram uma triste festa de despedida. Empurrados por canções que viraram hinos, carregaram nos ombros, ladeira arriba até a nova cidade, os andores com as imagens dos santos de devoção. Deixaram para trás o passado.

Em março de 1988 as comportas da barragem de Itaparica, a última construída no São Francisco, foram fechadas para que o grande lago com mais de cem quilômetros de extensão enchesse. O dilúvio sem chuva sepultou para sempre o que sobrou da antiga Rudela, como a cidade é chamada.

Os poucos prédios que ficaram ou foram deixados intactos – porque não deu tempo de derrubá-los ou por motivos religiosos – não resistiram as águas por muito tempo. E lá se foram a Igreja de São João Batista e o mítico sobrado, onde por décadas funcionou a primeira escola da cidade. A caixa d’água resistiu bravamente.

O represamento também afogou Petrolândia e Itacuruba, no lado pernambucano. Na Bahia, os locais atingidos foram Rudela e Barra do Tarrachil, em Chorrochó.

Algumas árvores foram transplantadas para a praça em frente à nova igreja. Os fícus morreram – talvez de saudades. Os coqueiros e uma grande árvore recolocada sobrevivem até hoje.

vista do alto

Farol sem lâmpada, a caixa d’água mais parece um candelabro a velar a velha cidade que jaz sob uma lâmina de água e lodo de profundidade variável. Em torno dela, o chão está mais perto do que para os lados da casa de Manoel dos Santos.

Para os velhos ribeirinhos, a caixa d’água é mais do que uma construção que resiste à passagem do tempo, à frieza das águas. É como sua presença gritasse todos os dias a mensagem levada pelo vento para os ouvidos dos seus conterrâneos:

“Foi daqui que vocês vieram. Não se esqueçam”.

Em seu bojo, o equipamento é o fiel depositário da história dos rodelenses. Quem viveu a (e na) velha cidade pode mentalmente escalar os seus degraus. E de lá de cima dar um mergulho nas suas lembranças que quase três décadas depois permanecem frescas e percorrer as ruas empoeiradas. É possível ver e até conversar com seus personagens. Abrir uma janela para o passado não é um exercício difícil de ser executado.

E não só os rodelenses podem fazer este percurso imaginário. Quem teve a sua cidade engolida por águas represadas está convidado. Cada qual se projetando no seu passado. Na Bahia, tiveram o mesmo destino os moradores de Glória – os primeiros na parte nordestina do São Francisco a terem suas terras inundadas na década de 1970 -, Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado, engolidas pela barragem de Sobradinho.

Foto da antiga Rodelas. Reprodução

a cidade de seis ruas

A caminhada da saudade começa pela rua dos Caboclos, nome social da Felipe Camarões. Andar pelas calçadas, onde antes as pessoas dormiam despreocupadamente nas noites calorentas, é experiência única. “Rudela” tinha seis ruas em 1988.

Os índios tuxás dançam o toré. A batida forte de seus pés cadencia o ritmo do passeio. Ouve-se de longe a voz forte e quase centenária de dona Cordolina:

“Minha mãe era a rainha/ Rainha de Portugal/ E o meu pai era professor/ Da família real/ Olhos de quixaba preta, minha vó/ Olhos de quixaba preta, minha avó”

Os guerreiros balançam os seus maracás com vontade na festa de despedida. Vestem a cataioba (a saia de caroá) e usam cocares antigos, feitos com papelão e penas de galinhas e perus.

Os visitantes passam em frente da casa da índia Noêmia, que chama uma das cadelas para dentro da casa.

“Vem cá, Leva e Traz”.

É uma indireta para um dos seus muitos desafetos.

No beco de seu Alcino, um dos acessos ao rio, passa uma tropa de jumentos com pressa para matar a sede.

Na Igreja de São João Batista, o padroeiro, que está sempre a velar pela cidade, por seus moradores e pelos visitantes. Castolina, sempre ela, puxa o Terço, em noite de novena.

FORRÓ E PARQUE INFANTIL

No Beco de Dora há concentração de pessoas que assistem a briga de bêbados, tradicional aos domingos.

Em poucas passadas, chegamos à rua Da Frente, única pavimentada na cidade. Lá, durante anos, é realizado o São João mais animado da região. O fole ronca e o forró vai até o amanhecer, animado pelo sanfoneiro Antônio Moreno.

Do primeiro andar do histórico sobrado pode-se ouvir uma professora na sua lida diária: dona Dulcina se desdobra na sua sala multisseriada. E no Salão dos Brancos nada se ouve.

Desce mais e chegamos à rua Dom Bosco. O grupo entra no CADE, onde aconteciam as festas e olha a capelinha do santo. Antes de assistir à apresentação dos Dissonantes, um mergulho maior na janela do tempo. Naquele local existia um parque infantil, criado nos anos 1960. Na época, um luxo para as cidades sertanejas. Depois de brincar na gangorra, o passeio recomeça.

Na retomada da caminhada, cruzamos com seu Tonhá e ouvimos o seu discurso anticomunistas e contra os revoltosos.

Passamos em frente aos fícus das casas de Almira, Teodomiro e dona Rosa Marçalino. Pausa para uma boquinha na casa de Dora e deixar a conta fiado, claro. Todos saem com os bolsos cheinhos de comunia.

O retorno é pela rua Firmínia Ramos, também conhecida como rua Detrás. É possível pegar uns alfenins na casa de dona Amélia, bater um papo com Julita, que no batente da janela apoiava o corpo com os cotovelos,

Na frente da casa de Naninha alguém grita: “Tem gato! ”. E todos fogem de Teresa e Zulmira, que saem xingando. Chegamos à pracinha, ponto de encontro de casais apaixonados ou que estão apenas em busca de diversão. Lá, bebemos água no chafariz. Afinal, doce e correria dão uma sede danada!

Na rua Domingos Almeida, pausa: sentamos nas muradas brancas do cais para ver a partida de futebol entre o Verde e o Amarelo, no campo cercado por algarobas. Mais um empate no clássico maior de toda a região.

A seguir, entramos na Biblioteca Oliveira Brito, onde folheamos alguns livros. Na saída, mais um grito:

“Porca Véia”

Nascimento arremessa bandas de tijolos em direção ao grupo, que novamente corre.

Um homem chama dona Carmelita Cruz à porta da sua casa. Tem pressa porque a mulher dele sente as dores de mais um parto.

CAPELINHA DOS PENITENTES

No passeio pela avenida Manoel Moura, observa-se a pracinha nunca concluída, o prédio simples da Prefeitura. A seguir, entramos no Salão dos Morenos, que há muito perdeu a sua representatividade.

Seguimos para o alto pela calçada do cemitério – alguns mais afoitos pegam cocos na roça de Lulu – para não perder o costume.

Próxima parada a capelinha dos penitentes, que com suas vozes graves entoam seus cânticos, com o cuidado de não permitir que as pessoas se aproximem muito porque querem preservar suas identidades. Seu Alexandre ameaça a todos com sua disciplina nunca usada, a não ser nele mesmo nos momentos de purificação espiritual.

No retorno, observa-se a movimentação no Colégio Nossa Senhora do Rosário, onde, além das vozes das professoras nas salas de aula, ouve-se o som de salto de sapato feminino de um lado para o outro e a discreta batida de um badalo de sineta. Quem estudou no CNSR lembra bem quem da dona dos sapatos.

Mesmo com vontade, ninguém mergulhou nas águas escuras e frias do açude.

O posto médico estava com pouco movimento naquele dia. Raimundão, como de costume, tirava uma soneca na cadeira do dentista.

E da Casa da Merenda saía um cheiro de quitutes saborosos.

A meninada das escolas Dulcina Cruz Lima, Eraldo Tinoco, Eufrosina Almeida e da Rômulo Galvão estava barulhenta. Era a hora do recreio e elas devoravam o que fora entregue pela fábrica da alimentação escolar.

FIM DA JORNADA

Antes de se despedir da velha cidade, damos uma passada na igreja para visitar São João Batista, sempre voltado para o rio. Subimos pelo cascalho e caímos na água fria e doce do Velho Chico.  Afinal, ir ao Rudela e não tomar banho no rio é pecado grave. A prainha, os carreiros, a pedra do boi e as pedrinhas são as principais paradas.

Na descida do rio, sentimos a falta de Zé Tolé, às suas margens, para a festa ser completa. Mas alguém gritou:

“Tolé, tussi”.

E Zé aparece enlouquecido pelo apelido. Responde com pedradas e xinga:

“Fio de uma fubana”.

A jornada chega ao fim. Valeu a pena visitar o Rudela.

Afinal, como disse Mário Quintana, parte da nossa essência fica onde a gente nasceu. A dos rodelenses está debaixo d’água, mas permanece viva.


Assista ao documentário Adeus Rodelas, partes 1 e 2, da Siri Produções Cinematográficas. Veja o sofrimento e a reação dos moradores pouco antes da inundação.

Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer  trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.

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2 respostas

  1. Assisti todo o filme, muito interessante, trouxe muitas lembranças da minha infância. Todo o tempo que fiquei fora de Rodelas sempre voltava com toda a minha família constituída e meus filhos adoravam, duas vezes por ano, uma em junho e outra em dezembro. Durante a inundação não tive a coragem de ir me despedi da nossa cidade, muito triste e passei algum tempo sem voltar a Rodelas e qdo voltei tudo era diferente, ficava apenas a saudade. Ficamos sem a nossa referência da infância. Senti e ainda sinto saudade de Rodelas e da fazenda em Penedo.

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