As coleções de Humberto

Humberto Fontana de Almeida,78 anos, trabalhou por mais de três décadas como oficial de justiça e avaliador judicial, em Santa Inês, cidade do Centro-Sul baiano, situada a 290 quilômetros da capital (Salvador). Ele tem orgulho de ter passado pelas funções sem maiores atritos e diz sentir falta de percorrer a região, incluindo Cravolândia e Irajuba, entregando intimações e avaliando propriedades em litígio.

Desde que soube da presença de Meus Sertões, Almeida mandou recados pelo irmão Alberto, dono de uma das duas pousadas existentes na cidade, informando que gostaria de ser personagem de uma reportagem. Prometeu contar muitas histórias e afirmou ser o único morador a ter novidades para apresentar.

Quando finalmente nos encontramos, ele falou sobre Santa Inês, cujo nome se deve à devoção de Maria Rosa Nunes Logrado, primeira descendente de italianos a se estabelecer no município e responsável pela doação de um terreno para a construção da capela dedicada à virgem mártir, decapitada aos 13 anos por ordem do vice-prefeito de Roma.

A degola ocorreu no ano 317, após a menina rejeitar pedido de casamento. No local onde foi a adolescente foi sepultada, a princesa Constantina mandou erguer a basílica de Santa Inês Fora dos Muros.  A jovem passou então a ser conhecida como Santa Agnes, se transformando em padroeira dos jardineiros, dos noivos, das mulheres virgens e das vítimas de abuso sexual.

O ex-oficial de justiça relatou ainda que a cidade já foi muito rica, graças a produção de café, fumo, sisal, mamona, pó de palha, abacaxi, mandioca e apara (tabletes de farinha de mandioca, secos ao sol, e usados para produção de pão. O café era o principal produto. E, segundo Humberto, foi considerado o mais puro do Brasil, em 1958.

Ele acrescentou que com a queda do índice pluviométrico, o município hoje não produz mais nada. Entrou em declínio, mas nos últimos anos estava começando a atrair visitantes, graças a iniciativa de se transformar em polo turístico, espalhando esculturas gigantes de dinossauros na entrada e nas principais praças da cidade (clique aqui  para ler mais sobre o tema), mas a pandemia de covid-19 parou com tudo.

“A economia de Santa Inês se baseia, atualmente, na renda dos aposentados, no funcionalismo público em geral e no que é pago pelo Bolsa Família” – admite.

O declínio econômico fez os moradores mais jovens migrarem para Brusque, em Santa Catarina, em busca de trabalho nas indústrias de calçado e confecção. O êxodo é mantido graças a uma linha de vans que faz duas viagens mensais para lá.

Humberto emendou fragmentos de histórias despreocupadamente. Depois dele discorrer sobre um estudo  acerca da longevidade dos moradores, pergunto qual a novidade que ele quer apresentar.

Antes de começar a falar sobre suas coleções, Humberto falou que cerca de 10% dos 10.583 habitantes, estimados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), foram atraídos pela instalação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano (IF Baiano). A instituição, criada em 2008, a partir da fusão das antigas escolas agrotécnicas federais e as escolas médias de agropecuária regional (Emarcs), possui 14 campi no estado.

O COLECIONADOR
Coleção de selos do avô de Humberto. Foto: Paulo Oliveira

Selos de 141 países, deixados pelo avô, serviram de inspiração para Humberto se transformar em colecionador de moedas, notas, pedras diversas e até meteoritos. Os hobbies do ex-oficial de justiça, de acordo com ele, servem para preencher o tempo que passou a dispor.

Ele narrou muitas peripécias, mas omitiu a principal. Falaremos disso mais adiante. Por enquanto, ficaremos nas histórias da forma como foram relatadas.

A coleção de pedras e meteoritos começou em 2018, quando na estrada que liga Lagoa Queimada e Cravolândia, o ex-oficial de justiça ouviu de uma senhora que na véspera havia trovejado e caído muitos raios.

Ao voltar ao local dias depois, Humberto encontrou uma pedra preta e brilhante, que nos mostrou. Não sem antes pegar um detector de diamante, adquirido por 195 reais na internet, e colocar sobre o mineral. O alarme disparou.

“Isso quer dizer que essa pedra tem coisa boa” – vibra.

Desde então, o colecionador sai, aos finais de semana, em busca de pedras diversas. Leva consigo uma pequena enxada e um detector de metais. As buscas se restringem ao entorno da Fazenda Cajazeiras, propriedade que pertenceu a um médico que abrigava e curava tuberculosos.

Há um ano e meio, a prefeitura derrubou um prédio que pertenceu a um rico exportador de café, chamado João Samuel Micheli, para construir um centro de convenções. No local, foram encontradas cerca de 700 moedas do tempo do Império, sendo que as 570 preservadas estavam misturadas com algumas peças de prata.

O colecionador pagou 500 reais pela descoberta e iniciou nova coleção. Humberto revelou que o “tesouro”, incluindo notas, foi encontrado na localidade de Riacho Fundo.

Pedras são o novo hobby do ex-oficial de justiça. Foto: Paulo Oliveira

Em suas andanças, Humberto do Fórum, como também é conhecido, disse ter encontrado uma ossada de uma águia gigante existente desde o período jurássico, na Fazenda Lucas. Ele estava acompanhado do cineasta Rogério Duarte, já falecido. Os ossos teriam ficado com Duarte.

Foi a partir da descoberta da dupla que o prefeito da época, Romildo Andrada, encomendou o primeiro dinossauro ao paleoescultor Anílson Borges.

Borges disse que os fósseis seriam de uma preguiça Eremotherium, animal milhares de anos mais recente que os dinossauros. Ele ressaltou que o material nunca foi analisado por paleontólogos.

Humberto calcula ter gasto até hoje 15 mil reais para fazer e ampliar suas coleções. No entanto, não sabe dizer o valor de cada uma. Em seguida, afirma que elas estão à venda. Chega até a oferecer uma comissão para o repórter, caso ele encontre um comprador.

“Esse hobby me distrai, mas dá uma certa ansiedade” – justifica, enquanto apresenta um grande pedaço de quartzo rosa.

A conversa de Humberto tem alguns arrodeios antes de terminar. Ele mencionou que acredita em Deus e na força do pensamento positivo. Comenta que estudou até o segundo ano do curso de direito, mas teve de trancar a matrícula porque um juiz reclamou da perda de produtividade do então funcionário do fórum.

Nos despedimos, pois está em cima da hora de pegar o ônibus de volta a Salvador.

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Dois dias antes de iniciar esta matéria, fiz as checagens de praxe. O interesse de Humberto por pedras diversas me levou a buscar informações sobre mineração em Santa Inês, a partir do site da Agência Nacional de Mineração (ANM). Afinal, a flexibilização da lei fez a concessão de licenciamentos ambientais se espalhar como uma praga.

Descobrimos então que a principal empresa do setor na região de Santa Inês é a Borborema, pertencente à australiana Brazilian Rare Earths PTY, exploradora de terras raras[1]. Outras empresas extraem minério de ferro e granito. Já a Vale Dourado Extraction, de Cravolândia, atua no segmento de opala, calcedônia e quartzo. Para nossa surpresa, a Vale Dourada é concorrente da Mineradora Humberto Fontana Ltda, cujo proprietário é o ex-oficial de justiça.

A empresa foi aberta em 26 de dezembro de 2019 e requereu lavra para garimpo em uma fazenda próxima à sede do município, um ano e meio depois. A permissão permite o aproveitamento imediato de jazidas minerais em condições específicas, sem a realização de trabalhos prévios, sem a utilização de explosivos, nem de lavra subterrânea.

A última movimentação no processo ocorreu em 25 de julho passado, quando foram entregues documentos à Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente de Santa Inês para licenciamento ambiental. Este foi o segredo que o colecionador empresário guardou até agora. Com fé e pensamento positivo, Humberto tem esperança de enriquecer.

–*–*–

[1] Terras raras são substâncias químicas usadas na indústria e incorporadas em supercondutores, magnetos e catalisadores. Elas são compostas por 17 elementos químicos de difícil extração.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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