Memórias de fogo

Capítulo 6:  Gisele e Cecília

Leonardo Lima e Luísa Carvalho

Não sei se era algo inevitável se tratando do assunto pretendíamos contar, mas foi impressionante como todas as pessoas que entrevistamos nos falaram coisas tão interessantes sobre suas vidas que eu e Leonardo queríamos acrescentar quase tudo das conversas em nossa audiorreportagem. Mesmo as partes que não tinham relação direta com o tema. Só pela forma como as pessoas contavam as histórias valia a pena.

A professora Gisele Magalhães e a aposentada Cecília Costa representam muito bem todos que nos ajudaram a construir a narrativa do podcast “A guerra da água”, por isso, nada mais justo que escrever um capítulo sobre elas na série sobre os bastidores da apuração.

Conheci Gisele em meados de 2020. Era o ápice da pandemia e eu estava escrevendo uma reportagem sobre como os agricultores familiares que comercializam alimentos em feiras livres, no oeste da Bahia, estavam conseguindo se sustentar durante o isolamento social.

As feiras estavam paralisadas na maioria dos lugares, o delivery não era uma opção viável para a maioria dos feirantes. Consegui o contato dela através de um conhecido em comum de Santana, cidade onde cresci. Meu município fica distante 100 km da terra dela, Correntina. Gisele faz parte da coordenação da associação dos produtores rurais de São Manuel e me ajudou a fazer contato com os lavradores da feirinha de lá.

Logo que surgiu a ideia da pauta da disputa pela água, pensei nela. Eu tinha certeza de que me ajudaria. Filha de agricultores familiares ribeirinhos, Gisele entendia bem mais a importância da história que iríamos contar. Ela não só topou ser entrevistada como nos encaminhou à Cecília, uma de nossas fontes cruciais.

Gisele se mudou para o centro da cidade para estudar e se tornou professora de história. Ao longo da vida, por influência de sua vivência na beira do rio – entre o final da infância e início da adolescência começou a vê-lo secar -, ela se interessou por questões ambientais e se engajou em movimentos sociais.

Ela lembrava com melancolia das experiências que teve e lamentava que as crianças da localidade não vivenciarão a mesma coisa. Um dos rios que corriam perto de sua casa era tão fundo que Gisele e seus amigos pulavam do topo de árvores dentro d’água. E se divertiam cantando pedrinhas e as arremessando no meio do rio. Ganhava a brincadeira quem encontrasse a pedra jogada mais fundo.

Não muitos anos depois, a lembrança dos episódios alegres na água passou a dividir espaço com memórias de desespero causadas pelas queimadas. Gisele nos contou sobre quando presenciou um grande incêndio na estrada. Ela estava em um carro, voltando de uma cidade vizinha para Correntina. Provavelmente, um pouco antes de alguém ter colocado fogo em uma área para transformá-la em pasto.

O incêndio se alastrou em grande proporção. Não sai de sua cabeça a imagem de cobras fugindo da mata em chamas para escapar do fogaréu. Para ela, esse momento foi marcante. Ficou claro os males que as pessoas são capazes de causar, motivadas pela ganância.

Cecília tem recordações parecidas. Pernambucana, se mudou para Bahia a fim de realizar trabalho pastoral na década de 1980. Nos finais de semana, costumava acompanhar um dos padres da diocese que ia celebrar missas na zona rural. A aposentada se refere a essa época como a das “grandes queimadas” porque, frequentemente, nessas viagens, encontrava fogo pelo caminho. As memórias dolorosas estão relacionadas com o impacto que isto causava na vida dos fecheiros – pessoas que integram as comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto.

Além da destruição ambiental, os incêndios também destruíam parte da cultura e do modo de vida desse povo. Muitos dos locais atingidos eram lugares onde os criadores de animais que eram levados para os fechos, paravam para dormir, fazer comida e repousar debaixo das árvores antes de seguir viagem no dia seguinte.

“Eles ficavam sem lugar para descansar. Isso foi e ainda é muito dolorido.” –  disse, cabisbaixa.

Na casa de Cecília, onde eu e Leonardo entramos para beber água, havia muitas fotos na parede da sala. Ela apontou para uma delas e explicou que ali estavam algumas companheiras do famoso “Lobby do Batom”, grupo que lutou pelos direitos das mulheres durante o processo de elaboração da Constituição de 1988. Cecília, representante da Bahia, disse que se orgulhava muito disso.

A entrevistada tem um histórico de militância. Foi sindicalista, fez parte da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do movimento das mulheres da Federação e da Associação dos Trabalhadores Rurais de Correntina. Também participou da coordenação nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais, em Brasília.

Sem conseguir dissociar sua vida da militância, Cecília acredita que, diante das destruições que presenciou no cerrado, a única alternativa é ir à luta. São várias as histórias que coleciona de suas andanças pelo Brasil, mas essa é outra história.

BASTIDORES DA REPORTAGEM

Capítulos I e II Capítulo III Capítulo IV Capítulo VPerfis dos autores Guerra da água

Luisa Carvalho Contributor

Entre o mar e o sertão. Luísa nasceu em Salvador e se mudou para Santana, no extremo oeste da Bahia, aos dois anos. Desde então, se divide entre as duas cidades e tenta aprender com o melhor delas. Sempre gostou de ser especialista em generalidades, o que tornou fácil a escolha por cursar jornalismo, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Aprendeu a ler com os gibis da Turma da Mônica e, desse momento em diante, se tornou uma exímia traça de livros. Lê de tudo, até bula de remédio. Mas tem uma preferência especial pela escrita de Lygia Fagundes Telles, João Guimarães Rosa e Gabriel Garcia Marquez.  Já teve experiências em redação, rádio, agência de assessoria de imprensa, faz ‘frila’ de vez em quando e pretende ir testando suas habilidades por aí em diferentes áreas. Em 2021, com o amigo Leonardo Lima, venceu a 13ª edição do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog, onde investigou como o agronegócio está secando os rios no oeste da Bahia.

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