As religiões

afro-gaúchas

A introdução de escravos no Rio Grande do Sul começou na primeira metade do século XVIII [1], segundo o doutor em antropologia Ari Pedro Oro [2]. Os primeiros escravizados vieram do Paraguai e do Uruguai, depois foram trazidos de outros estados brasileiros. Eles trabalhavam na agricultura, nas estâncias e na produção de charque. Com a chegada dos colonos alemães em 1824 e dos italianos em 1875 o percentual da população negra  diminuiu.

A historiadora Chaline de Souza afirma que é difícil identificar a origem africana dos povos escravizados, pois muitos eram afrodescendentes nascidos em países da América do Sul [3]. Entretanto há registros da presença de bantos, com conhecimento agropastoril; iorubás e sudaneses islamizados. O maior legado cultural dos negros no Rio Grande do Sul é o batuque (ou nação), religião de matriz africana, iniciado nas cidades de Rio Grande e Pelotas entre 1833 e 1859 [4].

No documentário etnográfico “Batuque Gaúcho: a Nação dos Orixás”, de 2011, o babalorixá, historiador e teólogo Hendriz de Orunmilá conta que o nome da religião foi dado pelos brancos de forma pejorativa para se referir às batucadas dos tambores. Os adeptos assumiram e ressignificaram a palavra.

Os rituais são feitos de acordo com cinco nações [5] que cultuam 12 orixás – Bará, Ogum, Iansã, Xangô, Odé/Otim, Ossanha, Xapanã, Obá, Ibeji, Oxum, Iemanjá e Oxalá [6]. No mesmo documentário, o antropólogo Norton Corrêa explica que, ao contrário do que ocorreu na Bahia, não havia intercâmbio constante com a África. Ele acrescenta que as línguas utilizadas nos cantos eram as mesmas utilizadas há 200 anos na Nigéria e no Benim.

Embora para os praticantes do candomblé baiano possa parecer estranhos, os negros gaúchos utilizam rituais pré-colonização, anteriores às mudanças ocorridas na própria África. Hendriz de Orunmilá ressalta que não há tradição cristalizada. O historiador também cita o conceito de “tradição inventada”, mencionado pelo historiador britânico Eric Hobsbawn [7], para mostrar elas surgem como reações a situações novas que assumem a forma de referência a situações anteriores ou estabelecem seu próprio passado através da repetição.

No batuque ou nação, a comida de Ogum é churrasco de costela de gado, bem diferente do candomblé onde é oferecido feijão preto, milho verde cozido, camarões seco, cebola e azeite de dendê. Segundo pai Hendrix, a tradição teria surgido durante a Guerra dos Farrapos. Esse era o alimento servido aos soldados negros, que o compartilhavam com o orixá da guerra.

Da mesma forma que pai Cristiano de Oxóssi tem dificuldade para manter o ritual de alimentação dos orixás do candomblé atualmente, devido ao preço extorsivo do quiabo e a inexistência de camarão seco defumado no estado. Para fazer caruru, por exemplo, ele compra o fruto originário da Etiópia, em Porto Alegre e manda buscar o camarão na Bahia. Se  para respeitar o rito hoje é difícil, imagina há cerca de dois séculos.

A primeira casa de umbanda gaúcha foi fundada na cidade de Rio Grande, em 1926, pelo ferroviário Otacílio Charrão. O nome da casa era “Reino de São Jorge”. Ela funcionava de forma itinerante para escapar da repressão policial [9]. De Rio Grande, a religião foi levada para Porto Alegre pelo capitão da marinha Laudelino de Souza Gomes, em 1932.

A partir de 1960, surgiram as casas cruzadas, onde os sacerdotes alternam os rituais de batuque, destinado aos orixás, com os de umbanda, onde se cultuam caboclos, pretos-velhos, caboclos, guerreiros, ciganos, pombagiras e exus.  Essa prática se desenvolveu rapidamente.

De acordo com  Norton Corrêa, o crescimento exponencial do rito cruzado ocorreu devido a três fatores: aprendizado geral mais simples, custos rituais mais baratos e a soma da força mística das duas religiões. Em 2011, estimava-se que existiam 30 mil terreiros no Rio Grande do Sul, sendo 80% deles cruzados.

Outro documentário nos dá a ideia da quarta modalidade de culto afro-gaúcho: a quimbanda, também incorporado às casas cruzadas. Em “Caminhos da religiosidade Afro-Riograndense”, disponível em parte 1 e parte 2 no You Tube, religiosos e acadêmicos explicam como o culto a Exus e Pombagiras evoluiu de uma linha da umbanda para um ritual próprio.

O filme foi produzido pela TV Educativa gaúcha e apresentado  na Bahia pelo Instituto de Radiodifusão Educativa (Irdeb), em 2013, a partir do trabalho realizado pelo publicitário e cientista político José Francisco de Souza Santos da Silva e pelo então mestrando em antropologia social Rafael Derois Santos.

Mãe Ieda de Ogum . Reprodução

No filme, a mãe de santo Ieda de Ogum conta que os exus eram uma classe de espíritos que incorporavam na última gira da sessão de umbanda para limpar o salão e retirar as energias negativas. Segundo a sacerdotisa, os exus evoluíram e passaram a ter uma linha própria. No terreiro de Ieda isso aconteceu em 1973.

Já professor José Carlos Gomes dos Anjos, do departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atribui à quimbanda a forma de se pensar a sacralidade do marginal e de se praticar a existência dela através de dimensões filosóficas, políticas, estéticas e sagradas.

Este é o resumo do depoimento que mãe Ieda dá no documentário:

“O Exu vem para servir. Exu não faz mal para ninguém. Exu não é demônio. O mal está na cabeça das pessoas. Elas sabem que ele trabalha rápido. Então algumas delas desesperadas, por carência ou por maldade acendem vela e, pedem para  tirar o trabalho de alguém. Podiam demandar pela própria saúde ou pelo estudo dos filhos, mas optam por outra coisa”.

A inovação no transe e na forma dos espíritos se apresentarem ao mundo fez Exu ganhar muita força e adeptos. Surgiram também distorções criticadas por sacerdotes de batuque, caciques de umbanda, chefes de quimbanda e babalorixás do candomblé. O aparecimento da quimbanda ostentação é consequência de uma indústria criada para movimentar o segmento.

O pai de santo Adriano Michel Barboza, 45 anos, sacerdote de batuque da nação Cabinda, em Santa Cruz do Sul considera o “boom” da quimbanda se deve às redes sociais: 

“As pessoas começaram a ver o que estava sendo feito e a querer mostrar o que faziam. Algumas casas passaram a fazer esses rituais por causa da internet”, analisa.

Michel também critica a proliferação de terreiros abertos por pessoas com pouco ou nenhum conhecimento sobre os cultos.

Pai Cristiano de Oxóssi concorda com o babalorixá gaúcho. Ele afirma que o aprendizado é longo e adverte a necessidade de se ter cuidado em manipular energias da natureza sem o devido preparo:

“É mexer em casa de marimbondo”, diz.

Com o luxo e a riqueza vieram também a exploração da fé e a disputa de ego e exibicionismo. Na internet é possível ver vídeos nos quais são realizadas festas para Pombagiras em salões alugados. As entidades, supostamente incorporadas, vestem vestidos de até R$ 2.500 reais, como se fossem debutantes. Também usam perucas de cabelos longos e coloridos, lentes de contato e unhas postiças compridas.

Durante as cerimônias ou festas  os adeptos e convidados chegam a caráter com capas, tridentes, chapéus de malandro e roupas nas cores preto e vermelho. O afã de fazer parte da corte dos Exus levaram também à criação de cursos virtuais de pais de santo com diplomação em dois ano. E assim como alguns pastores evangélicos, alguns supostos sacerdotes não têm pudor para pedir doações e patrocinadores.

–*–*–

[1] Números romanos que equivalem ao cardinal 18

[2] ORO, A. P. Religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul: passado e presente. Estudos Afro-Asiáticos,     Brasil, v. 24, n.2, p. 345-384, 2002.

[3] “O negro na história do Rio Grande do Sul”, Revista com Arte, 25/05/2020. Autores: Emily Lautert e Matheus Basso.

[4] Pesquisa em jornais feita pelo historiador Marco Antônio Lírio de Mello.

[5] Jeje, Ijexá, Jeje-Ijexá, Oyó e Cabinda. O Ketu historicamente esteve ausente no estado, vindo a se integrar no final do século XX (20), através do candomblé.

[6] ORO, A. P. Religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul: passado e presente. Estudos Afro-Asiáticos,    Brasil, v. 24, n.2, p. 345-384, 2002.

[7] Hobsbawn, Eric, e Ranger, Terence (organizadores). A invenção das tradições. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1984

[8] Revolução gaúcha que visava a derrubada do Império (1835-1845).

[9] ORO, A. P. Religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul: passado e presente. Estudos Afro-Asiáticos,     Brasil, v. 24, n.2, p. 345-384, 2002.

Uma roça de candomblé em colônia alemã

 

reportagem dedicada à luzia oliveira da silva (in memoriam)

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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