Aventuras de um colecionador
de moedas sociais

O comerciante Paulo José Farias de Barros, 50 anos, percorreu de motocicleta os 728 quilômetros que separam Salvador (BA) de Juazeiro do Norte (CE) para conhecer o Banco Comunitário Timbaúbas e comprar cédulas de Timba, nome dado a uma das muitas moedas sociais criadas para fortalecer economicamente territórios vulneráveis de todo o país. Ao chegar, viu que o estabelecimento estava desativado.

Para não perder a viagem, Paulo começou a procura alguém que lhe desse informações sobre os responsáveis pelo banco. Em uma barbearia, um funcionário passou o telefone de uma costureira que cuidava da iniciativa. Foram feitas dezenas de ligações e ninguém atendeu. O colecionador voltou ao salão e convenceu o barbeiro a ligar para a mulher.

Ela concordou em receber o colecionador na residência dela. Entre tecidos e linhas de uma fábrica caseira de roupas, o comerciante baiano pediu à costureira para acompanhá-lo até ao banco. Ela fez uma exigência: só iria se o vizinho, mototaxista de confiança, a levasse.

Paulo pagou a corrida e atravessou a cidade, seguindo a outra motocicleta. A costureira entrou no banco e pegou uma pasta, tipo classificador, no meio de muita poeira. A maioria das cédulas depositadas ali estavam bem estragadas. Paulo Barros escolheu as mais conservadas, trocou-as por reais e pagou o retorno ao mototaxista.

“Descobri o motivo por ter encontrado poucas notas quando um grupo de crianças me perguntou se não tinha ‘dinheirinho’ para eles brincarem” – conta bem humorado.

Essa foi apenas uma das aventuras de Paulo de Barros no sertão nordestino. Um dos 12 integrantes do moto clube Aranhas do Asfalto, ele conseguiu conciliar dois hobbies: viagens de motocicleta e o colecionismo.

Antes de se voltar para as cédulas de moedas sociais, a maioria feita com papel moeda, o comerciante já juntava cartões telefônicos, bilhetes de loteria, cartões de bancos e lojas e cheques. Há três anos, no entanto, uma reportagem sobre os bancos comunitários na televisão atiçou a curiosidade dele.

“No mesmo dia procurei informações e descobri a Incubadora Tecnológica de Economia Solidária e Gestão do Desenvolvimento Territorial da Universidade Federal da Bahia (Intecsol), que funcionava como uma espécie de incubadora de experiências comunitárias. Fui até lá, ouvi explicações sobre o sistema bancário solidário, peguei a lista das iniciativas existentes no estado e toquei em algumas cédulas” – recorda.

Fascinado com o desenho e as notas de Licuri (Guanambi – BA), Tintim (Lagoa de Dentro – AL), Cristalina (Pureza – RN), Kiriri (Ouriçangas – BA), dentre outras, o obsessivo colecionador encontrou a lista de pelo menos 100 bancos de diversas cidades do país na internet.

Em menos de 24 horas, ele iniciou as visitas nas instituições mais próximas. A primeira foi o banco Santa Luzia, no bairro Uruguai, em Salvador. Lá adquiriu cédulas de Umojas, palavra que na língua suaíli significa unidade.

A intenção inicial era ter duas notas de cada valor para exibi-las em uma folha frente e verso. Mas logo passou a comprar quatro jogos de cédulas, nos valores de 0,50, 1, 2, 5 e 10 unidades das moedas, que têm paridade com o Real. Os bancos comunitários dificilmente emitem 0,25 e 20, sendo ainda mais raras as de 50 e 100.

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A soma das séries corresponde a R$ 74.  Paulo passou a arredondar o valor comprando seis notas de uma unidade para incentivar novos colecionadores. Ou seja, em cada banco gasta R$ 80. Além disso, tem despesas de combustível, hospedagem e alimentação.

Em cálculo feito de cabeça foram consumidos R$ 3.000 com as notas e R$ 10 mil para percorrer cerca de 20 mil quilômetros até agora, pernoitar e se alimentar. Some-se a isso R$ 300 do álbum e das etiquetas para organizar a coleção. Total: R$ 13.300.

Até hoje, o comerciante de bottons, adesivos e bandeiras de clubes de motociclistas, residente no bairro do Pau Miúdo, esteve no Distrito Federal e em 12 estados (AL, BA, CE, DF, ES, MG, MS, MT, PB, RN, RS, SE e SP). E adquiriu 231 cédulas em 37 das 188 instituições comunitárias oficialmente cadastradas. O projeto é ir mais longe  e percorrer todo o Brasil para ampliar o acervo após a pandemia de covid-19 ser controlada.

Paulo também conta com a ajuda do colecionador e pesquisador português Armando Garcia. Especialista em notafilia (estudo de notas e papel moeda), Garcia acaba de lançar em sua página na internet – https://pt.calameo.com/accounts/991763 – dois volumes do estudo sobre moedas comunitárias brasileiras. Ato todo são 956 páginas de uma obra que ele considera incompleta.

Paulo Barros cita como nomes mais curiosos as seguintes moedas: Terra (Banco Olhos D’Água, Iguaci – AL), Sururu (Banco Quilombola do Iguape, Cachoeira – BA), Caetés (Banco Dois de Julho, Caetité – BA), Tintim (Lagoa de Dentro AL) e Gostoso (Banco Solidário, de São Miguel do Gostoso – RN).

Já entre as instituições, ressalta a experiência que conheceu em Matarandiba, na cidade de Vera Cruz (BA), onde vários empreendimentos – padarias, estação de rádio, agência de turismo, horta e curso de informática – se integraram ao banco local. Eles ofereciam promoções para quem usava a moeda social.

“Quatro pães custavam um real, mas quem comprasse com uma unidade do dinheiro do banco levava cinco. Os turistas compravam as cédulas motivados pelas ofertas e também para levar como lembrança, aumentando a circulação de valores” – exemplifica.

SOLIDARIEDADE

A experiência em Juazeiro do Norte não foi a única aventura que marcou o colecionador. Em algumas ocasiões, ele só conseguiu atingir o objetivo graças a solidariedade dos sertanejos. Foi assim em Pureza (RN), onde circula a Cristalina. A agência bancária fica a 30 quilômetros do centro da cidade, no final de uma estrada de areia fofa.

“Imagina o trabalho para chegar lá. Descobri que o banco funcionava no Clube de Mães, mas não havia ninguém. Depois de pedir informações, soube que a responsável estava internada em um hospital de Natal, a quase 100 quilômetros. Mesmo doente, ela ligou para o irmão, pediu para ele pegar a chave do estabelecimento e fazer a troca de reais por cédulas locais para mim” – relata.

Em Alagoas, em Igaci, a contato de Paulo informou que o banco não funcionaria naquele dia. Depois de muita insistência, a jovem pediu para se encontrar com ele no único posto de gasolina às 18h15. No horário combinado, a mulher chegou da cidade vizinha, onde trabalha. Levou o colecionador até o banco, pegou um chaveiro atrás de um vaso de plantas, abriu a agência e efetuou a troca por Terras. Em seguida, explicou que não trabalhava mais ali , mas pediu para uma funcionária deixar as chaves para poder me atender.

As experiências de Paulo de Barros com a “socionumismática” também o faz colecionar histórias. Ele diz que a prática não é muito difundida, daí o reduzido número de colecionadores. Embora se esforce para encontrar novos adeptos, nem sempre obtém êxito.

Uma vez convidou um amigo do grupo de motoqueiros Aranhas do Asfalto e foi com ele aos bancos de Cairu e Canavieiras, no sul da Bahia. Lá conseguiu o Tinharé e o Moex. No entanto, o colega não quis seguir adiante.

“Quase sempre viajo sem um endereço exato, poucas pessoas na cidade conhecem os bancos, pois as agências costumam ficar longe do centro. Várias estão localizadas em área rural ou em distritos de difícil acesso. Quando você chega, percebe que a instituição não funciona naquele dia ou então encerrou o expediente. Estes são fatores que afastam os colecionadores” – revela.

Por que você então continua a colecionar?

“A cada visita descubro as peculiaridades do local e conheço um pouco mais dos problemas sociais do meu país. Vejo também que temos um povo forte, batalhando pela sobrevivência e resistindo graças aos benefícios gerados pela solidariedade. Quando encontro as cédulas, essas se transformam nos meus troféus.

Tenho a certeza de que a cada R$ 80 que deixo em uma comunidade, eu ajudo alguém a mudar a vida. Uma vez a atendente me falou que aquele dinheiro iria financiar uma indústria de “geladinhos” (picolés artesanais preparados em sacos plásticos), sonho de uma moradora, e um ateliê de pipas, idealizado por um garoto. Eles precisavam apenas do empréstimo de R$ 80 que eu deixei lá para iniciar um negócio simples, mas que tem o significado de uma vida para quem tem tão pouco.”

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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5 respostas

  1. Conheci Paulo Barros nestas duas viagens por este Brasil, e ele me falou dos bancos comunitários e sua pesquisa e coleção, muito bacana. Grande pessoal.

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