A trezena de Santo Antônio em Canudos: filas, pix e história

“Foi o Bom Jesus (nutro a mais íntima satisfação de declarar-vos) que tocou e moveu os corações dos fiéis para me prestarem as suas esmolas e os seus braços a fim de levar a efeito a obra de seu servo. […] Impossível seria, eu fazer a Igreja de Santo Antônio se o Bom Jesus deixasse de prestar-me o seu poderoso auxílio.”

Livro de sermões de Antônio Conselheiro, volume “Tempestades
que se Levantam no Coração de Maria por ocasião do Mistério da Anunciação”

O mestre José Calasans, um dos mais importantes intérpretes da saga de Antônio Conselheiro, nos ensina que o beato passou pelo povoado de Canudos outras vezes antes de se fixar em 1893. Em uma de suas andanças anteriores ele se comprometeu com o comerciante e negociante de couro Antônio da Mota a erguer uma casa de orações bem maior do que a capela existente no local, cujo padroeiro desde sempre foi Santo Antônio.

No início de 93, o templo que ficou conhecido como Igreja Velha, dedicado a Santo Antônio ficou pronto. Ela foi sagrada pelo padre Vicente Sabino dos Santos, vigário do Cumbe (hoje o município de Euclides da Cunha), possivelmente em agosto, com uma grande festa popular, com foguetório, confissões, batizados e casamentos. Há quem considere ter sido uma das maiores festividades do povoado.

A antiga capela foi preservada e passou a se chamar de Santuário, onde havia um altar com grande número de imagens de santos. Ao lado dela, Conselheiro fez um pequeno quarto onde morou até morrer. Antes disso, em janeiro de 1894, Antônio Vicente Mendes Maciel começou a construção da maior e mais importante de suas obras, sob a invocação de Bom Jesus. A nova igreja dispunha de paredes muito grossas, considerada uma fortaleza pelos militares que massacraram o povo de Canudos para enfrentar a República.

As construções não resistiram ao bombardeio do Exército, no entanto ficaram registradas no imaginário popular através do contar e recontar das memórias dos sobreviventes aos seus descendentes. Devido a isso, a Igreja de Santo Antônio continua a se destacar luminosa, tendo à frente um imenso cruzeiro e o templo de Bom Jesus, conforme descrito pelos correspondentes na cobertura do final da guerra em 1997.

AS TRÊS CANUDOS E UM SALTO NO TEMPO

 Antes de pularmos 124 anos para o futuro é preciso saber que a atual Canudos é a terceira da região. A primeira surgiu às margens do rio Vaza-Barris, a 12 km da nova cidade. Era um povoado nos arredores da Fazenda Canudos, abandonada pelos descendentes de Garcia D’Ávila. Garcia foi um administrador colonial português, dono do maior latifúndio do mundo. Eram 800 mil quilômetros quadrados entre a Bahia e o Maranhão.

Foi nas imediações da fazenda que o beato se estabeleceu, no final do século XVIII e criou Belo Monte, atraindo cerca de 25 mil habitantes. O massacre riscou o arraial conselheirista do mapa. No entanto, 13 anos depois, sobreviventes da guerra e admiradores de Antônio Maciel fizeram a segunda Canudos sobre as ruínas de Belo Monte – ela também seria destruída pelas águas do açude Cocorobó. As obras começaram nos anos 50 e o distrito, antes pertencente a Euclides da Cunha, foi submerso em 1969. Um pequeno vilarejo escapou e hoje é chamado de Canudos Velho.

A Canudos atual, formada por moradores da anterior e por pessoas de outras cidades atraídas pelo dinheiro movimentado na localidade durante a construção da barragem, se emancipou em 1985.

Esse contexto é necessário para termos noção da importância dos festejos religiosos e profanos de Santo Antônio. E de como a pandemia e as novas tecnologias impactaram na realização dos eventos.

“Este ano (2021), por causa da pandemia, não tem alvorada no Santo Antônio de Canudos. Mas a devoção ao santo que reúne os canudenses desde os tempos do Conselheiro exige que se acorde de madrugada pra garantir um lugar na tradicional trezena. Por causa do toque de recolher, às 20h, as missas começam mais cedo, às 6h da tarde, e com três pessoas, no máximo, em cada banco. A distribuição de senhas pela manhã foi a forma que a igreja achou mais justa pra cumprir as determinações das autoridades sanitárias.

Além das filas, que começam de madrugada, o Santo Antônio desse novo tempo não tem a tradicional banda de pífanos, a entrega festiva do estandarte na casa dos noiteiros, a quermesse. Muito menos o forró. Numa cidade onde o único hospital não tem UTI e os de referência, em Juazeiro e Remanso, estão lotados, as medidas de distanciamento e prevenção são mesmo caso de vida ou morte.

 “São tempos de guerra”, diz uma canudense que acompanha a trezena do padroeiro desde a segunda Canudos. “Mas vamos cumprir as normas, lutar pra que todos sejam vacinados logo e rezar pra que Santo Antônio interceda por nossa gente já tão sofrida. Como diz um dos benditos que cantamos nestes dias com tanta fé, se milagres desejais, recorrei a Santo Antônio, vereis fugir o demônio e as tentações infernais”.

Os três parágrafos acima foram escritos pela jornalista Socorro Araújo, nascida e criada na segunda Canudos e colaboradora de Meus Sertões. Ele foi escrito para ser publicado no Facebook, mas veio parar aqui de uma maneira bem interessante, reforçando a crença as coisas acontecerem quando têm que ser.

Socorro enviou uma pauta sobre outro tema para Meus Sertões pelo whatsapp e começou a conversar. No meio da história, ela revelou que estava em Canudos e que precisava acordar de madrugada para pegar a senha que a Igreja Matriz distribuí para as missas deste ano. Após algumas informações, convidamos a jornalista a escrever um texto sobre as mudanças nos festejos em tempos de pandemia. Dois dias depois, ela nos enviou o texto acima, muito bem escrito, liberando a utilização. Foi como se fôssemos picados por uma mosca azul e passássemos a aspirar conhecimento em vez de poder e glória. E a reportagem se desenvolveu.

A canudense costuma dizer: “O Santo Antônio de Canudos é mais que uma festa católica. Os canudenses sempre se reuniram em torno dessa devoção”. Levei um tempo para entender que isso acontece porque concentra toda a história do povo em uma celebração. Por favor, me acompanhem:

A fila para as senhas começa a se formar às 5 horas da manhã, embora os números só comecem a ser distribuídos três horas depois. Essa fórmula adotada pela Matriz de Santo Antônio me faz lembrar a de antigos postos de saúde, maternidades, institutos para tirar carteira de identidade. Antes da distribuição de 82 senhas para o interior da igreja e 80 para as tendas da área externa, os fiéis aproveitam para botar a conversa em dia:

“Mesmo com distanciamento rolam boas resenhas e boas lembranças. Os temas são variados. Se fala muito em Covid, em histórias de quem perdeu parente, de quem está com alguém internado… Bolsonaro (ele aqui teve menos que 20% dos votos e agora deve ter diminuído). E lembranças, de como já foi a festa, dos que se estivessem vivos estariam na fila…” – conta Socorro.

Cada pessoa só pode pegar três senhas para dentro e uma para fora ou todas fora. As regras para participar das orações são claras: cada banco da igreja só pode ser ocupado por três pessoas, no máximo. É preciso usar máscaras e borrifar álcool nas mãos.

Em 2020, a trezena foi transmitida por uma emissora de rádio e pela internet, o que se repete este ano. Pelo canal de You Tube da paróquia podemos constatamos a queda da audiência virtual enquanto a reza avança. No primeiro dia, ela foi assistida por 449 pessoas. Na sexta noite, por 187.

Vale ressaltar ser a primeira vez que padre Jeferson Pereira celebra Santo Antônio na cidade. Antes dele, foi a vez do reverendo Jaílton comandar um único conjunto de celebrações antes da pandemia. Muitos fiéis, no entanto, sentem saudades do padre Alberto (José Alberto Barbosa Gonçalves), falecido em setembro de 2020, que costumava relacionar devoção com o passado de luta e resistência de Canudos. Alegre, ele cantava e dançava forró durante os festejos.

Durante as missas dos primeiros 13 dias de junho, o pároco local se reveza com religiosos convidados. O bispo Dom Guido e os padres Antônio, nascido em Canudos, e João, de Jeremoabo, estão na programação deste ano.

O QUINTO DIA

Santo Antônio milagroso/ Santo Antônio universal/
Confiantes suplicamos/ Uma benção celestial
Hino de Santo Antônio

O coral entoa os primeiros versos do hino dedicado ao padroeiro no início da celebração, que terá como tema a caridade e o perdão. Os professores são os noiteiros do quinto dia de rezas. Tradicionalmente, era atribuído a uma pessoa ou família a responsabilidade de cuidar dos preparativos da reza, da arrumação da igreja, dos zabumbeiros e organizar o leilão.

Na segunda Canudos, Manoel Ciríaco, jagunço que sobreviveu ao massacre do Exército, cuidava da primeira noite. Já os abastados comerciantes e políticos ficavam com os festejos dos últimos dias, movido a fogos, música e muita alegria (leia amanhã sobre os festejos na segunda Canudos). Padre Alberto modificou o sistema, intercalando famílias com grupos e sindicatos. Hoje há a noite das viúvas, da prefeitura, do sindicato dos trabalhadores rurais, da associação de pescadores.

Durante a transmissão da missa, aparece uma legenda com o Pix (meio de pagamento instantâneo) da paróquia para que os cristãos façam doações em dinheiro. Em vários pontos da celebração, um coroinha limpa o microfone e borrifa álcool na mão do padre e de pessoas que vão distribuir a hóstia. Algumas delas carregam seus próprios borrifadores. O padre só tira a máscara para fazer a homilia. O ponto central do discurso

“Para nós que estamos caminhando com Santo Antônio é um grande ensinamento: se a nossa vida não for doação, não vale a pena estar aqui. (…) Essa trezena não pode ser mais uma trezena nesse tempo tão marcado pela fome, pela morte, pela dor, e que nós muitas vezes, confortavelmente não nos aproximamos dos que sofrem. Nós somos chamados a uma mudança de perspectiva, de atitude, e o senhor nos chama pelo exemplo de Santo Antônio a não doar o resto, (devemos) doar tudo o que somos.” – diz o religioso em seu discurso.

Os avisos no final da missa anunciam batismos no dia seguinte e a venda, por R$ 15, dos tíquetes da feijoada “de qualidade” a ser distribuída no domingo. Padre Jeferson também lembra que a doação por Pix sai com o CNPJ da diocese, mas a conta é da paróquia de Canudos. Agradece a todos e termina a celebração dando vivas a Santo Antônio, aos professores e a Jesus Cristo.

O coral entoa animado:

“É esse Santo Antônio da minha terra/ É essa a alegria do meu povo/ Em cada Santo Antônio que chega/ Essa gente fica logo assim de novo/ E assim vai o tempo se passando/ E a gente ficando na recordação/ É esse Santo Antônio animado/ De amor passado de uma ilusão.”

A imagem do santo, encomendada no início do século XX e transferida da segunda Canudos para a Canudos Cocorobó, como dizem os antigos, está em lugar de destaque. Penso nas mudanças ocorridas nos mais de 200 anos que o divino Antônio protege as diferentes Canudos.

O padroeiro dos amputados, dos animais, dos estéreis, dos barqueiros, dos idosos, das moças casadouras e das grávidas, dos pescadores, dos agricultores, dos viajantes, dos marinheiros, dos pobres e dos oprimidos, deve estar muito ocupado.

Além disso, Antônio não conta mais com a colaboração imprescindível de padre Alberto. Ele, certamente, na quinta noite da trezena, Dia Mundial do Meio Ambiente, teria falado dos danos ambientais e dos estragos que a multinacional francesa Voltalia causará às comunidades rurais e à fauna de Canudos, com a construção de um parque eólico com 81 turbinas. O religioso também não ressaltará nas homilias a importância de conservar a caatinga e os crimes cometidos pelo atual ministro do meio ambiente Ricardo Salles

Meus olhos permanecem na imagem, mas o pensamento muda de direção: lembro que Socorro vai acordar mais cedo ainda, no dia seguinte, para pegar senhas para a mãe e duas amigas. A fé delas é inabalável.

–*–

Amanhã: O escritor Eldon Canário conta como eram os festejos na Segunda Canudos

P.S: Muito obrigado Socorro Araújo. Sem sua participação e colaboração esta matéria não seria possível.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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5 respostas

  1. Linda matéria!!! Fez-me voltar no tempo e relembrar uma visita a Canudos três anos atrás, quando pude rememorar a guerra que dizimou centenas de seguidores do beato Conselheiro e ainda me indignar com tamanha atrocidade. Em igual proporção, fui tomada por uma força que parecia brotar do nada e de cada morador. Especialmente nos dias em que celebram Santo Antônio. Na ocasião, rezei e dancei forró com eles durante seis dias e, de lá, saí com a força digna de uma sertaneja nata.

    1. Uma experiência fascinante. Meus Sertões pretende viver algo semelhante quando a pandemia for controlada. Quem sabe no próximo ano não estaremos no Santo Antônio de Canudos!

      Paulo Oliveira – Editor de Meus Sertões

  2. Minha cara jornalista Socorro, parabéns pela iniciativa das narrativas sobre no Canudos, primeira, segunda e extensivo a terceira, pelos relatos históricos das Festa de nosso querido Santo Antônio e o trabalho e peregrinação do grande Líder Antônio Conselheiro. Bonita narração sobre essas Canudos históricas. Também, quando possível, fazemos aqui em São Paulo, através de nossa modesta Associação a UPIC, um resgate de nossa cidade histórica, através dos Encontros dos canudenses, por aqui. Abraço e saudações conselheiristas.

  3. Parabéns ao jornalista Paulo Oliveira (Meus Sertões) por essa matéria muito bonita da nossa querida jornalista Socorro, por sua narrativas sobre as saudosas histórias da primeira (do grande Líder Antônio Conselheiro), segunda e terceira Canudos. Nos deixa com muita lembrança desses festejos tão animados e alegres de nosso querido Santo Antônio. Nós da UPIC, aqui em São Paulo que fazemos o Encontro dos canudenses no mês de novembro para resgatar um pouco de nossa história, estamos totalmente paralisados em consequência desta pandemia. Saudações conselheiristas!

    1. João, muito obrigado por nos acompanhar. Saiba que foi por causa de minha primeira viagem a Canudos que o site foi criado. Contarei esta história detalhadamente em breve.

      Abraço em todos os canudenses,

      Paulo Oliveira – editor

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