A história do projeto Minha Cidade

“Desmitificar, recontar e valorizar a história local. Parabéns. Esse trabalho é magnífico”. O comentário feito por @Ugomengo dá uma ideia do prestígio e da importância da página “Minha Cidade Senhor do Bonfim”, criada no Instagram e no Facebook, por Alex Barbosa, 43 anos. O conteúdo, que atraiu até ontem 11.161 seguidores nas duas redes sociais, desperta emoções e faz os fãs recordarem histórias do tempo de criança.

O ator Bertrand Duarte, por exemplo, ao ver as fotos de Maria Florípedes e Maria de Lourdes, educadoras rígidas que não dispensavam a palmatória, relatou que teve o primeiro contato com elas em um caruru. Ele contou que uma das irmãs Militão entregou um prato cheio da iguaria que ele não costumava ingerir e disse, “olhando com firmeza”: “É pra comer tudo!!!”.

Bertrand Duarte, ator bonfinense. Reprodução do Facebook
Bertrand Duarte, ator bonfinense. Reprodução do Facebook
As irmãos Militão. Postagem de Minha Cidade
Maria Florípedes e Maria de Lourdes: educadoras rígidas

“Aquela ordem que em verdade era o desejo intrínsico de bem nutrir o conviva, me soou como imposição. Em poucos muinutos caí no choro. Funcionou, porque em poucos minutos fui acudido por minha avó e em mais alguns instantes o pratão de carurru estava longe de minhas mãos e um cântico forte tomava a sala acalentando uma criança assustava que começava a perceber os personagens reais da vida…” – acrescenta o bonfinense que tem no currículo 11 peças teatrais, cinco filmes e nove trabalhos para a TV Globo, incluindo a novela “A favorita” e a minissérie “O compadre de Ogum”

Até chegar ao formato aos temas das páginas atuais, Alex, profissional das áreas de comunicação e marketing, testou várias fórmulas e contou com a colaboração de Hélio de Freitas e do professor Raimundo Paiva e, guardiões da memória do município, mortos em dezembro de 2020 e janeiro de 2021 pela covid-19. Em entrevista ao site Meus Sertões, Alex Barboso disse que foi convocado por amigo em comum a seguir o exemplo de seus mentores, algo que já vem trilhando há dois anos.

Leia a entrevista na íntegra:

Como surgiu a ideia de criar o projeto Minha Cidade Senhor do Bonfim?

Surgiu quando eu descobri que ia ser pai. Quando ele nasceu, decidi que eu precisava contar minha história para ele saber quem eu era. E boa parte da minha história estava aqui em Bonfim.

Eu morava em Salvador há mais de 20 anos. Aí comecei a voltar para Bonfim para ele ficar com os avós, para conhecer onde eu passei a minha infância. E ele é apaixonado por futebol, que hoje está muito focado na Europa, na Champions League. No meu tempo, não tinha isso. O nosso estádio era a rua. Comecei o projeto escrevendo sobre o futebol em Bonfim para mostrar que você pode jogar bola e ser craque em qualquer lugar.

Quais os principais jogadores e clubes bonfinenses?

Bonfim tinha referências históricas importantes no futebol. Tem o Bobô, mais recente, campeão brasileiro pelo Bahia. No passado tinha o Pedro Amorim, que foi o ídolo do Fluminense na época de 30 e 40, e chegou à seleção brasileira. E teve outros inúmeros jogadores aqui. Inclusive eu brinco: Bobô é o melhor jogador da Bahia e um dos melhores de Bonfim porque aqui teve muito craque aqui.

(Nota da redação – Bobô é o apelido de Raimundo Nonato Tavares da Silva, nascido em 28/11/62. Ele Jogou na Catuense, Bahia, São Paulo, Flamengo, Fluminense, Corinthians, Internacional e fez três jogos pela seleção brasileira. Encerrou carreira 34 anos no Bahia, onde também foi treinador no biênio 2002/2003.

O ex-atleta era presidente Superintendência de Desportos da Bahia (Sudesb), quando parte da arquibancada da Fonte Nova, em Salvador, desabou e causou a morte de sete torcedores. Apontado como um dos responsáveis pelo acidente ocorrido devido à falta de manutenção que deveria ser feita pela Sudesb, foi absolvido em 2010. Em 2014 se elegeu deputado estadual. Foi reeleito em 2018

Pedro Amorim nasceu em 13/10/1919. Era filho de um rico comerciante e fazendeiro. Dedicou a vida ao futebol e à medicina. Como jogador defendeu o Bahia, Botafogo (BA) e o Fluminense (RJ), onde foi tricampeão carioca (1937, 38 e 39) e supercampeão carioca (1946). Pelo tricolor, Pedro Amorim marcou 188 gols em 310 jogos, uma incrível marca.

Na seleção carioca, campeão brasileira em 1946, formou o ataque com Zizinho, Heleno de Freitas, Ademir Menezes e Zezé. Também atuou na seleção brasileira. Quando parou de jogar, Pedro retorno a Senhor do Bonfim e trabalhou como médico. Morreu em 1989. O estádio municipal foi batizado com o nome dele).

Quais os times que Bonfim teve?

Alguns times mandaram os jogos aqui nas últimas décadas. O Feirense foi um deles. Agora o time atual é o Botafogo Bonfinense, que confirmou essa semana que vai participar da segunda divisão do campeonato baiano. Bonfim teve outros times aqui, muitos deles amadores. O ápice do futebol aconteceu em 80, quando chegamos ao vice-campeonato no Intermunicipal. Foi a geração de Bobô. Dos 11 titulares, pelo menos seis foram jogar em grandes clubes da Bahia. Só Bobô vingou.

Como foi a transição de um projeto esportivo para a área de cultura, história e memória?

A página inicialmente se chamava “Bonfim, futebol e história”. Começamos no final de 2017. Em um determinado momento, eu comecei a publicar fotos. Fotos e escalações faziam sucesso com os boleiros, mas em um determinado momento essas fotografias foram acabando e eu as substituí por fotos da cidade. Quando vi que não fazia sentido postar só as fotografias, passei a contar histórias explicando a origem dos nomes das ruas, por exemplo. Um dia, conversando com meu sócio em uma empresa em Salvador, ele me disse que falar sobre Senhor do Bonfim tinha futuro. Daí nasceu o “Minha Cidade”, em dezembro de 2018. A página sobre futebol foi desativada.

Alex Barbosa em entrevista, via Zoom, para Meus Sertões. Reprodução
Alex Barbosa em entrevista a Meus Sertões

Qual o diferencial de Minha Cidade?

O diferencial para qualquer negócio é você ter sustentabilidade. Começar é uma coisa, se manter é outra. Eu procurei dar um viés empresarial para criar estruturas que sustentáveis para esse projeto, para ele não ser apenas algo de curta duração. E até agora a gente está conseguindo.

Como é o modelo sustentável do projeto?

Estruturamos o projeto de forma empresarial. Hoje a gente tem missão, tem visão, tem valores. O principal era saber que tipo de negócio a gente estava montando. Defini  que ia produzir conteúdo baseado em história regional e local. Inicialmente, Senhor do Bonfim seria o nosso piloto. Constatamos que havia viabilidade financeira e decidimos colocá-lo em prática. Pensamos, inclusive, na possibilidade de ampliar, tipo uma franquia, para contar a história de outros municípios.

Nesses dois anos de existência, estamos estruturando um mercado nas redes sociais. Metade de nossos seguidores têm entre 18 e 35 anos. Desmistificamos a afirmação que quem gosta de História são os mais velhos. Nossas postagens são feitas em linguagem direta. No início, Minha Cidade publicava uma foto do município às segundas-feiras; uma curiosidade na quarta; e a biografia de alguém na sexta. O engajamento era maior no dia da imagem. A gente foi identificando esse comportamento e alterou a apresentação do conteúdo.

Quanto ao retorno financeiro, creio que o almanaque de São João vai mostrar que são ações como esta que bancarão nossas ações.

No formato de postagens inicial qual fazia maior sucesso?

A princípio os textos e fotos sobre a cidade. Isso é um dado curioso. Quando eu criei o perfil de Bonfim, quase paralelo eu criei um parecido para Amargosa (BA), onde morei. Lá, a publicação que mais fazia sucesso era a das pessoas. Os seguidores gostavam de ver seus conterrâneos. Em Bonfim ocorria o inverso, era a cidade. Quando eu publicava um ícone, a biografia de alguém, o engajamento era um. Quando era a foto da cidade, aumentava. Com o passar do tempo isso foi se equilibrando porque eu comecei a falar de pessoas mais próximas. Gente que está viva, gente comum.

Pesquisando você muda algumas coisas. Se tiver senso crítico, consegue perceber isso que a história de Bonfim, como a do Brasil, é machista. Nos livros oficiais você tem poucos nomes de mulheres. Ela é racista porque a questão do negro está fora desse contexto.  O São João é uma festa popular popular, feita pelo povo, que não está nos registros oficiais porque ela é contada pela elite. E aí a gente foi preenchendo essas lacunas.

Durante todo o mês de Novembro falamos sobre 30 pessoas negras da cidade, incluindo o  intelectual, o doutor, o vendedor de acarajé. Demos espaço para todo mundo, mostrando que todo mundo faz parte da história. Em março de 2019, publicamos perfis de mulheres, inclusive mulher trans. Ao falarmos dessas pessoas mais próximas, o engajamento mudou. Quando você fala da biografias é maior do que quando cita a cidade.

Hoje vocês estão em quais redes sociais?

Instagram e Facebook.

O Facebook não está fraco em audiência?

Tem publicações que bombam no Facebook e não bombam no Instagram. Varia muito. Eu mantenho os dois porque são um pouco diferentes. A turma mais velha (3.305 seguidores). está mais no Facebook, interage mais. Tem um jeitinho para lidar com ele. Eu participo de grupos e acabo repostando nossos textos. Por exemplo, hoje mesmo eu publiquei sobre um cangaceiro, aí eu tento publicar nos grupos de cangaço. Dá mais trabalho, mas permite uma interação legal.

A rede social é um meio, algo que tem um peso importante. Se a gente está onde a gente conseguiu chegar hoje é por conta dela. Nosso objetivo principal é levar informação. Também uso muito o Whats App. O clique, a curtida eu tenho interesse, mas não é o foco.

Vocês têm alguém que patrocina direta ou indiretamente o projeto?

Nada, só a gente.

Quantas pessoas trabalham no Minha Cidade Senhor do Bonfim?

Eu e duas pessoas me apoiam na questão de gestão, de planejamento e organização.

Você divide esse trabalho com a agência que você tem?

Não. É pessoal. Eu trabalho nos dois. A agência é de captação de recursos. Nosso foco não é muito a cultura, são mais projetos empresariais. Aí é meio casa de ferreiro, espeto de pau. Você consegue recursos para os outros.

Você falou antes do início da entrevista que perdeu dois amigos para a covid-19 que eram referência para o seu trabalho, donos de boa parte das memórias de Bonfim. Eles colaboraram no surgimento do Minha Cidade?

Um tinha 90, outro 75 anos. Dois jovens amigos meus. Hélio de Freitas era o grande memorialista de Bonfim. Era escritor desde os 14 anos de idade. Tem três livros lançados falando da cidade. Ele teve influência direta. A linguagem dele sempre foi simples. Era da poesia, da prosa e falava principalmente do povo, que é muito como eu penso. A história do somos nós que fazemos. E eu tento sempre colocar as pessoas como protagonistas. Hélio fazia muito bem isso.

Já  Raimundo Paiva foi meu professor. Ele era um grande colecionador. Tanto que todas as postagens que eu publicava ele imprimia, guardava, tinha um álbum para isso. Ele me passava fotos antigas de Senhor do Bonfim. Eu adorava sentar com ele na praça e ficar conversando. E dali vinham as histórias. Eu nunca gravei nada porque era uma conversa de amigos.

De todas as histórias publicadas qual a que fez mais sucesso e a que deu algum problema?

Não teve episódios de problemas. Teve a história do Velho Motta. Eu citei que ele teria sido escravo de um ex-governador da Bahia.

(Nota da redação: José Gonçalves da Silva), que era daqui de Bonfim. Encontrei a informação em um jornal. A família do ex-governador disse que ele não tinha escravos, que era um equívoco, mas não foi além disso.

E sobre as histórias de grande repercussão?

No Instagram foi uma publicação sobre São João, onde eu provoquei: “Quais são as suas lembranças do São João na praça?” Aí teve um monte de engajamento, só perdeu para a nota de falecimento de um médico famoso daqui que faleceu por conta da covid.

No Facebook, foi a de um morador de rua que chamado Feijão Cru. Ele era louco, andava pela rua vestido com um meião do Flamengo. A crianças tinham medo dele. Aí eu postei: “Quem teve medo do Feijão Cru?”. Eu tive 385 comentários, 465 compartilhamentos e 639 likes. Muitas pessoas contaram episódios envolvendo o personagem. É aquela história, a pessoa simples faz parte de seu imaginário. Se ninguém lembrar, ela vai se tornar invisível.

Bonfim terá almanaque de São João

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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2 respostas

  1. Quando tive o primeiro contato com Minha Cidade, fiquei fascinado. Sou geração anos 80 e meu estádio era na Rua Dr. Costa Pinto. A cada pôster recordo de minha infância e tento passar para meus filhos um pouco da minha infância, eles riem muito de mim… rsrs. E sempre que tenho oportunidade comento e divulgo com amigos a história de Bonfim.
    Parabéns a todos os envolvidos na iniciativa e que continuem com este maravilhoso projeto.
    Orgulho de ser Bonfinense!!!

  2. Parabéns,Alex Barbosa, sou Bonfinense,sou admirador d este tipo de trabalho,que resgata passado de pessoas que escreveram ss/histórias e vc.esta numa terra fértil de temos que darão muitos frutos no futuro.

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