Uma experiência fascinante: “Trilhas da memória” – capítulo III

Samuel Santos Oliveira chegou ao último ano do ensino médio do Colégio Estadual Rui Barbosa, em Boninal (BA), com a pecha de aluno desinteressado. Ele admite que nunca foi um aluno exemplar: conversava muito em sala de aula e atrapalhava os professores. Tinha implicância por não conseguir fixar a atenção nas coisas que não o interessavam, como os temas da filosofia e de outras matérias. No entanto, seu comportamento mudou meses antes de ele se formar.

“Eu nunca tive uma professora igual a Maria Isabel. Acho que ela foi a professora que mais me transformou” – diz o aluno.

A transformação ocorreu quando Maria Isabel Gonçalves, 33 anos, decidiu empregar os ensinamentos da filosofia ubuntu como base de um projeto educacional “As filosofias de minha avó: poetizando memórias para afirmar direitos”, que acabou se estendendo por toda a escola.

Essa concepção filosófica africana sustenta que os pilares do respeito e da solidariedade são fundamentais no relacionamento entre as pessoas. O escritor e filósofo queniano John Mbiti enunciou o ubuntu como “eu sou porque nós somos”. O conceito serve para enfatizar a necessidade de união, de consenso nas tomadas de decisão e da ética comunitária. Também está ligado à ancestralidade, ao respeito pela religiosidade, individualidade e particularidade do outro.

Resumido por frase como “nós somos um” e “uma lesão é uma lesão para todos, o ubuntu foi fundamental para a construção da identidade sul-africana pós-aphartheid, ligando-se à história da luta contra a exclusão da cidadania e o direito dos negros. Nos povoados de Boninal, Piatã e Seabra fez os jovens se reaproximarem de seus ancestrais e ganharem consciência ecológica.

Quando Isabel passou o trabalho para a turma 3C, o primeiro pensamento que veio à cabeça de Samuel foi: “Eu vou fazer esse trabalho nada, véio!”.  Quando a professora disse que uma das propostas era elaborar o projeto a partir de entrevistas com os moradores mais antigos, o aluno mudou de ideia:

Alunos da turma 3C do Colégio Estadual Rui Barbosa desbravam o povoado Machado. Foto: Arquivo pessoal
Alunos da turma 3C desbravam o povoado Machado. Foto: Arquivo pessoal

“Eu gosto desse negócio de falar com os mais velhos. Quando ela propôs, decidi fazer. Aí eu mandava as fotos que fazia e ela me motivava, dava parabéns e dizia que o trabalho estava indo bem demais. A partir daí foi uma professora que comecei a admira, a me inspirar. Hoje, reconheço que as ideias dela são parecidas com as minhas. Eu quero ser igual a Maria Isabel” – diz.

Para fazer o trabalho, Samuel formou um grupo com os amigos Emílio, Jeferson, Rubens e Sineon. Embora alguns morem na localidade de São Joaquim, eles decidiram realizar entrevistas e pesquisas no povoado Machado, em Piatã (BA), cidade da Chapada Diamantina localizada 568 km de Salvador. É lá que a família do líder do grupo mora.

Vale ressaltar que Piatã é o município que registra as maiores altitudes – entre 1.280 metros e 1.500 metros – e menores temperaturas na Bahia – chega a menos 5º centígrados no inverno. Seu clima e geografia são apropriados para a cultura do café arábica.

Os estudantes dividiram o projeto em etapas:

“A gente começou indo sozinho para o lugar onde o povoado surgiu. A ideia era conhecer melhor a região para não ficar perdido. Nas conversas com minha mãe, Maria de Souza Oliveira, e outros moradores, eles nos contaram a história do Machado, apontaram onde ficavam ruínas históricas e lembraram como era a vida lá. Por fim, fizemos trilhas para encontrar casas antigas, ruínas e o que restou de uma velha igreja” – conta Samuel.

Acompanhe parte das entrevistas e o roteiro da trilha no vídeo abaixo.


Durante as quase oito horas de caminhada, em diferentes dias, os alunos de Maria Isabel concluíram que a vida no passado era sofrida, não havia alimentação farta, mas seus antepassados não desistiam da luta. A vida, de acordo com eles, ficou mais fácil hoje, graças a tecnologia, mas surgiram novos problemas. A depressão foi um deles.

Os jovens ficaram intrigados depois de encontrarem ruínas de 20 casas e uma igreja. Eles se perguntavam para onde foi o povo. Nas conversas com os mais velhos, descobriram que as famílias pioneiras mudaram aos poucos para a parte mais baixa do povoado, onde a água encanada e a energia elétrica chegaram primeiro.

A maior tristeza do grupo foi se deparar com áreas degradadas e desmatadas:

“Doía o coração. O rio que corria do Machado, atravessava o São Joaquim e terminava na barragem, secou. Ninguém mais sabe o nome do rio. Os mais novos não sentem saudades dele. A gente só sente saudades do que conheceu. Eu brincava escondido no rio na minha infância.” – conta Samuel.

Samuel tem planos de obter ajuda para reflorestar a região. Foto: Turma 3 C
Samuel tem planos de obter ajuda para reflorestar a região. Foto: Turma 3 C

A esperança de ver o rio sem nome ressurgir ganhou força em 2019. Após cinco anos, uma das nascentes voltou a verter água depois de dias consecutivos de chuva. Antes bem fundo, na época, ele agora mal cobria a canela de uma criança. Mas o mais importante para os estudantes foi o sinal de que nem tudo estava perdido. E eles começaram a traçar um plano de revitalização, incluindo a reeducação da comunidade, a busca por doação de mudas e a missão de convencer a prefeitura e o Ibama a apoiarem a iniciativa.

Samuel conta que está pesquisando quais são os tipos de mudas mais adequadas para a região. Ele pretende cursar agronomia e levar adiante o plano de reflorestamento.

“Espero que meu projeto vá pra frente. Vou conseguir o apoio da prefeitura. Eu vou ser entrevistado novamente daqui a cinco, seis anos e o rio vai estar correndo o ano inteiro sem parar” – profetiza.

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Capítulo ICapítulo II Capítulo IV Capítulo V Capítulo VI Final

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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