Uma experiência fascinante: “Amanda e seus avôs” – capítulo II

Nem precisou a professora Maria Isabel Gonçalves terminar de apresentar a proposta de trabalho para os alunos. Amanda Silva Rocha, 17 anos, já sabia o que fazer: vídeos e um texto para preservar a memória de seus avôs Francisco Rocha e Joaquim. O primeiro, morador do povoado de Felizardo, em Piatã, tinha 94 anos à época. Exímio contador de histórias, não disfarçava o xodó pela neta.

Joaquim, avô materno, considerado pela adolescente como seu segundo pai, morreu em 2011. Amanda conta que foi na casa dele, em Boninal, onde passou as melhores férias da vida. Está gravada na memória dela vê-lo à distância, no ponto de ônibus, esperando as três netas chegarem.

Mal desciam do transporte, começava a discussão para ver quem o avô transportaria na caixa de verdura de plástico presa à garupa. No início, espremidas, cabiam duas. A mais velha ficou maior que o compartimento, mas as discussões nunca terminaram.

“A sensação de ir no caixote era muito boa. Era como estar em uma moto” – recorda.

A vontade de fazer com que todos escutassem as histórias dos avôs foi maior do que a importância que ela deu ao fato do trabalho escolar valer nota. Segundo Maria Isabel, Amanda foi a aluna que mais se encantou com o projeto.

“É maravilhoso você ver alguém tão jovem consciente da importância dos avôs. No final das aulas, ela vinha falar sobre Felizardo, comunidade de seu Francisco, e das coisas que ele contava. Para o avô que tinha morrido, Joaquim, ela escreveu um texto. Não queria deixá-lo de fora” – conta a professora.

PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA

Em 2019, quando o projeto foi lançado, Amanda estava no segundo ano do ensino médio. Ela resolveu fazer o trabalho com a ajuda da irmã, Brenda, da última série. Por estar trabalhando, a mais nova pediu para uma prima entrevistar seu Francisco, mas o resultado não ficou bom. Então, decidiu encarar os 38 quilômetros que separam o centro de Boninal do povoado de Felizardo, no município de Piatã.

Seu Francisco Rocha, irmão de Amanda. Álbum de família
Seu Francisco, avô de Amanda. Arquivo

Foram duas viagens. Na primeira, entrevistou o avô sobre questões diversas, incluindo o amor, e pediu um conselho dele para os jovens. Na segunda, coletou histórias da infância do nonagenário. Bem lúcido, ele lembrou do tempo em que tinha medo de ir à escola porque o professor era bravo. Para faltar, se jogava no rio e voltava para casa molhado, dizendo que caiu da pinguela.

Francisco Rocha morreu há dois meses. Das conversas com o avô, a neta intuiu que viver no sertão era bem mais complicado do que ela imaginava.

“As crianças e os jovens tinham que enfrentar o mato para ir à escola, correndo risco de ser atacado por cobra, por onça. Podia até ter gente ruim esperando por eles. Hoje, a gente tem todo conforto” – compara.

Com base nas histórias do avô, Amanda concluiu que a mudança mais significativa para os moradores de Felizardo foi o acesso à internet. Segundo a estudante, por ser um “lugarzinho pequeno”, os moradores do povoado conversavam na frente das casas e as ruas estavam sempre cheias. Atualmente, é difícil ver movimento. A tecnologia melhorou a comunicação com as pessoas de longe, mas piorou entre os vizinhos.

Amanda Silva faz planos de preservar as memórias do avô. No colégio, apresentou só uma história para evitar que o vídeo ficasse muito long, pois havia um tempo máximo para cada apresentação. O restante do conteúdo está guardado, provisoriamente, no celular minha irmã.

O trabalho sobre os avôs e sobre memória causou outro impacto em Amanda: ela passou a gostar ainda mais do povoado.

“Comecei a ver Felizardo totalmente diferente. Não só como o lugar onde morei. É muito melhor do que antes. Eu quero ir lá sempre” – revela.

O avô materno
Amanda Silva fará vestibular para medicina. Arquivo pessoal
Amanda preserva a memória da família. Arquivo

Quando seu Joaquim morreu aos 76 anos, Amanda tinha nove. Ele vivia no povoado de Saquinho, em Boninal. A estudante e as irmãs passavam férias na casa do agricultor. Embora não se recorde das histórias que ele contava, ela lembra que se sentia protegida e feliz ao lado do avô. Por isso, fez questão de escrever um texto sobre ele, no qual fala de lembranças, saudades, tristeza e o milagre da vida.

O estímulo à escrita foi um dos argumentos a favor da premiação da professora Maria Isabel. Uma das selecionadoras do Educador Nota 10, Mariângela Bueno, ressaltou o avanço das turmas em conhecimentos de Língua Portuguesa. Também destacou o fato de a proposta educacional pode ser replicada em qualquer lugar por depender de recursos simples como celulares e um editor de vídeo.

Falar da morte dos avôs ainda mexe muito com os sentimentos da jovem. A futura universitária acredita que  seria melhor se eles fossem imortais:

“Quando convivemos muito com os avôs, a gente cria um apego muito grande. Perder um deles é muito dolorido. Se fosse uma coisa eterna seria muito melhor, pois viveríamos em um mundo sem sofrimento” – imagina.

–*–

O trabalho de Amanda é constituído por dois vídeos, um deles tendo a música “Girassol”, de Whindersson Nunes e Priscilla Alcântara na trilha sonora, e o texto sobre e para Joaquim. Meus Sertões editou o material e transformou em um único clipe, sem alterar o conteúdo. A redação foi inserida em forma de áudio, narrada pela jornalista Angelina Nunes. Veja como ficou a homenagem para Francisco e Joaquim.

 

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Capítulo I Capítulo III Capítulo IV Capítulo V Capítulo VI Final

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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2 respostas

  1. Sensacional! Só quem vivenciou esse amor sabe o quanto vale para vida inteira. Tive avós presentes mas o meu grande amor foi minha avó Cacilda, grande Ziza. Obrigada a Meus Sertões pela delicadeza e profundidade de sentimentos.

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