Beijinha – Capítulo IV

Mulher da Vida, minha Irmã (…)
Flor sombria, sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria, da
pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes da Terra.
“Mulher da Vida” – Cora Coralina

 Maria José Bernardina de Siqueira, uma menina mirrada e espevitada, recebeu da mãe o apelido de Beijinha, referência à beleza de uma flor pequenina. Foi assim que Maria ficou conhecida nos cabarés de São Bento do Una – cidade onde nasceu e se criou – Jupi, Arcoverde, Garanhuns e Recife, em Pernambuco.

Prostituta desde o início da adolescência, Beijinha deixou de ser profissional do sexo em 2009, quando foi levada para o Lar dos Idosos Domus Christi (Casa de Cristo, em português), uma das obras de assistência social criada pelo padre Airton Freire. Aos 95 anos, ela faz parte do grupo de anciãos abandonados ou sem família que vivem e recebem atenção especial no abrigo.

“Eu nunca trabalhei, meu filho. Eu digo a verdade, tenha raiva de mim quem quiser. Eu vivia de cabaré em cabaré. Eu era bem novinha, deste tamanhinho (faz gesto para mostrar que era bem pequena). Nem sei quantos anos eu tinha (funcionários do abrigo dizem 12 ou 13). Eu vivia trepando na rola dos cabras” – diz, arrancando gargalhadas das pessoas em volta.

Beijinha tem cerca de 1,50 metro. Vaidosa, não dispensa maquiagem. As roupas são limpas e bem conservadas. Ao ser elogiada pela elegância, dispara:

“Boto batom e troco de roupa para ver se arrumo namorado. Se arrumar, eu ainda trepo”.

Dessa vez, ela mesmo ri.

Embora tente glamurizar a prostituição e conte histórias engraçadas e picantes há muita tristeza em seu semblante. Sem querer dar detalhes, revela que foi parar no primeiro cabaré iludida por uns homens que abusaram dela. No instante seguinte, muda de assunto: fala que gostava de dançar, que era bem paga e podia dar presentes para os pais, Delmiro Bernardino Siqueira e Emília.

É preciso crescer esta noite inteira sem parar
De crescer e querer
A puta que não sabe
O gosto do desejo do menino
O gosto menino
Que nem o menino
Sabe, e quer saber, querendo a puta
“A Puta” – Carlos Drummond de Andrade

Estuprada logo ao sair da infância, Beijinha esconde o sofrimento. Troca o rumo da conversa, lembrando que tirou a virgindade de muitos adolescentes, dois em especial. Ela conta que tomava banho, se perfumava – “sempre fui limpa” – e ia para o mato com meninos novinhos. Carregava consigo um lençol para forrar o chão.

“Eu chamava e ele vinha com o prego durinho. Aí botava ele por cima d’eu. Pegava a trouxinha dele, botava no buraco do jundiá e pegava a peneirar (rebolar) na cabeça da trouxa dele. Ele dizia: ‘Ô Beijinha, como é bom!’. Ele era uma criança, quase do meu tamanho”.

Jundiá, nome de um peixe de rio carnudo e saboroso, é como a idosa chama até hoje o órgão sexual feminino. Beijinha não gosta de usar “periquito” ou “periquita” como a maioria de suas conterrâneas. Alega que são nomes feios.

A ex-prostituta diz que nunca engravidou e que colocou “chifres” em muita gente. Refuta, no entanto, a possibilidade de ter sofrido uma traição.

“Mulher nenhuma botou galha em mim. Era eu quem botava nelas. Eu comia os machos dela tudinho. Eles diziam que não tinha mulher mió que eu: “Eita bicha do tabaco bom da bobônica” – acrescenta.

Marlene, uma das funcionárias do abrigo, ressalta que a popularidade da anciã entre os homens da mesma faixa etária ainda é elevada. Diz que é raro receber um idoso na instituição que não a conheça e que não tenha uma história para contar sobre ela.

 

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Meu Guriabá
Veio da Bahia
Ele bebe muito
Sem tê friguizia (…)
Meu Guriabá
É de nosso estado
Ele bebe muito
Só compra fiado.
“O reisado alagoano” – Théo Brandão

No folclore nordestino, o reisado, auto realizado entre o Natal e o Dia de Reis, tem personagens que fazem parte de entremeios (pequenas e breves representações dramáticas). Entre 1910 e 1930, um desses dramas tinha como figura principal um ser que tanto poderia ser homem como bicho, que bebia muito e fazia o povo chorar. Beijinha teve o seu “Guriabá”, um cliente com quem se relacionou e que a espancava frequentemente.

Ao descobrir uma das muitas traições de Maria José, João “Guriabá” deu um murro no rosto dela e espatifou a dentadura feita com dentes de ouro:

“Eu tinha uma chapa que era a coisa mais linda do mundo. Só tinha ouro, ouro, ouro. Foi um presente de um homem com quem eu quengava. Aí eu botei uma galha no cabra (João) com um menino. Ele me deu um soco tão forte, que foi caco de chapa para todo canto. Ele também quebrou meu braço” – fala, mostrando as marcas da agressão.

Em outra ocasião, Guriabá a atacou com uma faca, ferindo-a no órgão sexual.

“Eu botava muita galha nele. Era muita ponta. Aí ele judiava de mim” – diz.

Apesar de ter sido espancada e maltratada, Beijinha insiste em dizer que a vida de cabaré é boa. E causa surpresa aos visitantes quando conta que se prostituiu até os 84 anos e ainda sente desejo. É por isso que os funcionários do abrigo ficam atentos aos passos da anciã, pois, se deixar, ela sai à procura de companhia masculina.

Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm (…)
“Envelhecer” – Mário Quintana

Beijinha costuma rir da própria desgraça e fazer com que as pessoas em torno dela achem tudo divertido. Chega ao ponto de levantar e rebolar, simulando movimentos que, segundo ela, enlouqueciam os homens. Em um momento, porém, a tristeza se liberta.

Começa com um lamento pelas coisas que não fez – aprender a ler e a escrever dentre elas. Depois, se dá conta que não se cuidou direito – só no abrigo passou a ter tratamento médico frequente. Os problemas de visão, as dores nas costas e a dor por baixo do peito lhe incomodam, mas o que faz o choro irromper é o fato de que, mesmo cercada por um monte de gente que ri de suas histórias, ela está só:

“Morreu tudinho: pai, mãe, avô, vó, irmão. Se tivesse minha família, eu não estava aqui. Mãe teve quatro filhos. Os meninos morreram, só ficou eu e Jardelina. Ela estava nesse abrigo comigo quando morreu. Era minha irmã, minha anjinha. Eu não tenho mais ninguém”.

 

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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5 respostas

  1. Uma história simplesmente sensacional, aliás, muito peculiar da sociedade Brasileira e, em particular das Nordestinas que, trazem consigo todo um contexto social, cultural e financeiro como meio de sobrevivência, mesmo a prostituição sendo uma profissão secular, mas ainda hoje é tão discriminada e vista como o expurgo da sociedade, isso se tratando de quem usa o sexo como meio de sobrevivência, mas para as filhinhas de Papai é apenas uma diversão sem cunho pejorativo.
    Parabéns pela reportagem.

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