As criadoras de peixes – capítulo IV

O choro chega primeiro. Antes das primeiras palavras saírem, se torna convulsivo e se propaga entre as outras integrantes da Associação São Sebastião do Sítio Umburanas (Asssu), na zona rural de Jatobá, em Pernambuco.

O choro de Ângela durante depoimento forte sobre como sua vida mudou. Foto: Severino Silva
Ângela chora ao falar sobre como sua vida mudou. Foto: Severino Silva

Ângela Maria da Cruz, 34 anos, casada e mãe de três filhos foi quem abriu as comportas para as lágrimas quando deu o depoimento sobre o que mudou em sua vida após se associar a primeira das duas associações de piscicultores formadas exclusivamente por mulheres.

“A gente vivia até sem nada para comer porque na agricultura só dá alguma coisa quando chove. Hoje a gente tem o peixe, né? Mesmo que não tenha dinheiro, ainda tem peixe para comer. Isso é gratificante até demais” – fala entre soluços e não consegue dizer mais nada.

A emoção leva alguns minutos para se dissipar.

Quando a associação mulheres foi criada anos pelo padre Pier Antônio Miglio, 66 anos, a especialista em associativismo Ivone Lisboa da Silva, 61, e a Diocese de Floresta, há nove anos, as integrantes traçaram uma estratégia para poder cumprir funções tradicionalmente exercidas pelos homens.

Maria Leonídia da Cruz Sá, 36 anos, casada, dois filhos, uma das decanas do grupo, revela que elas decidiram trabalhar de maneira coletiva para suprir o que acreditavam não possuir: força. Para carregarem sozinhas os sacos de 25 quilos de ração faziam o esforço em duplas, mas logo os músculos se habituaram, facilitando a tarefa.

Mais difícil foi vencer a incredulidade da comunidade e dos clientes.

“Achavam que por ser uma atividade tão pesada na parte física, acabaríamos desistindo e sendo substituídas por homens. Mas a gente superou tudo. Hoje somos tratadas com igualdade. Nas outras associações que têm homem e mulher, as mulheres não fazem as mesmas atividades que os homens, mas ganham partes iguais. Aqui não tem essa diferença” – conta Alexsandra Jerônimo da Silva, 32 anos, casada, dois filhos e há sete anos e oito meses na piscicultura.

A Asssu tem 12 associadas. Das oito que conversaram conosco, seis fazem parte do grupo de fundadoras. A exceção fica por conta de Alexsandra (oito anos e oito meses) e Janecleide Alves Barbosa, que prefere não revelar a idade. Casada, mãe de duas crianças, ela está há um ano e onze meses no grupo, mas celebra conquistas importantes desde o primeiro semestre no grupo:

“O que eu vejo é assim:  quando a mulher não trabalha, fica só em casa, depende do marido. Em tudo tem que estar comunicando. Aqui damos muito valor ao nosso ganho porque ele garante nossa liberdade. Tem coisas íntimas que a gente vai comprar e não precisa pedir ao marido. Coisa íntima mesmo, de mulher. Então, trabalhar aqui dá essa independência.” – ressalta.

Além da relativa liberdade, o trabalho conscientizou as piscicultoras, quase todas ex-empregadas domésticas, de que antes não passavam de mão de obra barata, explorada por patrões que pagavam R$ 50 mensais. Na associação, o ganho está relacionado ao faturamento, tirando as despesas. Atualmente, a média é de R$ 1.700 mensais.

Muitas saíam da localidade para trabalhar a pé em casa de família, em Itaparica, área de Jatobá onde moram pessoas de maior poder aquisitivo, entre elas funcionários da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf). Levavam pelo menos uma hora e vinte minutos para ir e o mesmo tempo para voltar. Também sabiam que se fossem demitidas, sairiam com uma mão na frente, outra atrás.

Mulheres da Asssu, Leonídia à frente,levam tanque-rede para manutenção. Foto: Severino Silva
Mulheres da Asssu, Leonídia à frente,levam tanque-rede para manutenção. Foto: Severino Silva

“Hoje, o pessoal fala assim: “Se eu sair da piscicultura, para casa de família não quero voltar”. Ou então: “Não me vejo mais presa, limpando casa”. Por que isso acontece? Por que a gente já se acostumou a ser livre. Aqui, ninguém manda em ninguém. Todo mundo administra, tem seu dia de coordenador. A gente é dona do próprio negócio.” – explica Maria Leonídia.

Mas para atingir esse ponto, o caminho foi longo. Quando as veteranas chegaram, após fazer estágio nas pisciculturas mais antigas, só havia algarobas e pedras no terreno onde hoje está a sede e o antigo barracão – hoje cedido para a outro grupo de mulheres. Foram as pioneiras que limparam o local, de onde tiraram dez carradas de pedra.

Um militar aposentado, chamado Marcos, incentivador do projeto e colaborador de padre Antônio e Ivone, ensinou como deveriam proceder para preparar o alicerce da sede da associação. Elas abriram dez buracos de 60 cm por 80 centímetros. Como uma delas estava grávida e outra de licença, brincavam que era um para cada associada.

Ao mesmo tempo que construíam o escritório, o refeitório, o banheiro e o depósito de ração, passaram a montar as passarelas onde os tanques-rede ficam fixados. As veteranas têm orgulho de dizer que 95% do pontilhão foi feito no serrote e que as tábuas do assoalho são de pequiá verdadeiro, madeira pesada e resistente usada na construção naval. Em nove anos, só duas foram trocadas.

No entorno da associação estão estacionadas sete motocicletas. Foram os primeiros bens que o trabalho das piscicultoras gerou. Alexsandra, a mais falante e comunicativa do grupo, conta que vinha do centro de Jatobá para a zona rural em uma velha bicicleta. Nos trechos de subida, descia do selim e empurrava a bike. Cobria os 12 quilômetros de distância em pouco mais de meia hora. Em 11 meses, juntou dinheiro e comprou uma moto. Agora, está tirando habilitação para dirigir automóvel.

Já Rosineide Bezerra da Cunha, 43 anos, oito na Asssu, celebra o fato de ter conseguido adquirir um carro, graças a criação de tilápias. Compra de terreno ou casa, obras nas residências e poupança também estão entre os investimentos feitos pelas piscicultoras. Hoje também não dependem exclusivamente do atendimento na rede pública de saúde, pois podem pagar por consultas e exames particulares.

A LUTA CONTRA AS PLANTAS AQUÁTICAS

A segunda associação feminina, criada na Diocese de Jatobá ainda está tentando se recuperar do baque que sofreu em 2016, pouco mais de dois anos após a fundação. Descuido na manutenção dos tanques-rede permitiu a proliferação de elódeas, plantas aquáticas que diminuem o oxigênio da água e causam mortandade dos peixes. Resultado: 12 toneladas de tilápias mortas.

Baronesas (plantas aquáticas) em torno do tanque das Mulheres Guerreiras. Foto: Severino Silva
Baronesas (plantas aquáticas) em torno do tanque das Guerreiras. Foto: Severino Silva

Desanimadas, as associadas foram se afastando. Das fundadoras restou Islane Maria dos Santos, 25 anos. Cinco foram substituídas e agora tentam reerguer o grupo. A questão das elódeas foi resolvida com limpeza adequada.

O próximo passo é atrair novas sócias. Por enquanto, avaliam estagiárias que se ofereceram para o serviço. Rafaela Dantas da Silva, 20 anos, e Marilene de Sá Silva, 21 terão que passar três meses aprendendo como funciona a burocracia da associação e a criação e venda de peixes. Se tiverem bom desempenho durante o aprendizado, preencherão duas das seis vagas. Neste período, receberão 50% do que as veteranas ganham. A produção atual do grupo é de 10 toneladas mensais, metade da meta.

Cada associação cuida das próprias vendas. Normalmente, os peixes atingem o peso ideal – o estabelecido é um quilo – em seis ou sete meses. Essa associação de mulheres atinge a meta entre oito e dez meses. A demora reduz o ritmo das vendas e o lucro. Um desafio grande que as mulheres guerreiras do sítio Umburanas pretendem superar.

 

TRABALHO DURO
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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