A renda de bilro de Poço Redondo

“Olê, mulher rendeira
Olê, mulher rendá
A pequena vai no bolso, a maior vai no embornal
Se chora por mim não fica, só se eu não puder levar”

MULHER RENDEIRA
Letra original da música cuja
autoria é atribuída a Lampião

Maria Domingas dos Santos Neto, 50 anos, guarda com carinho um entremeio de dois centímetros de largura por 50 centímetros de comprimento feito por sua avó materna, que morreu há 40 anos. A peça branca ficou amarelada por nunca ter sido lavada para preservar a goma da linha original. O entremeio faz Domingas lembrar do tempo que era criança, em Coruripe (AL), e ficava na cama, ao lado da avó que já não andava, vendo-a usar as mãos para fazer os bilros dançarem e criarem objetos maravilhosos, arte que ela veio a aprender três décadas depois ao se mudar para Poço Redondo (SE), cidade conhecida por gerar cangaceiros e mulheres rendeiras.

Maria Domingas, casada, três filhos – duas moças e um rapaz -, sempre viu no artesanato uma forma de melhorar a renda familiar. Desde nova aprendeu crochê e a fazer reparos em roupas, pregar zíperes e preparar bainhas na máquina de costura. Depois, fez um curso para produção de bornais iguais aos usados no cangaço. Em 2006, se esforçou para ser aceita em um curso de renda de bilro, voltado para beneficiários do Programa Fome Zero, do qual não participava. Como faltou uma pessoa para completar a turma, ela foi matriculada. O que aprendia à tarde, ensinava “de noitinha” à filha mais velha Alane, hoje com 28 anos.

A implantação do curso pela secretaria de Inclusão Social de Sergipe ocorreu em uma época em que já se podia contar a quantidade de rendeiras da cidade nos dedos da mão. As mais velhas, muitas delas com resistência a repassar o que sabiam, tinham morrido ou parado de trabalhar por causa de problemas de saúde. A maioria das mulheres jovens não tinha interesse no aprendizado. Após três meses de aulas com três horas de duração, três vezes na semana, cinco novas artesãs se formaram. Duas Marias foram as únicas que se dedicaram à arte.

Maria José trabalhou até um acidente vascular cerebral paralisá-la. Ela morreu em 2017. Maria Domingas se apaixonou pela atividade. E, além de produzir muito, virou professora e formou mais de 50 pessoas, de oito a 70 anos, incluindo uma família inteira do povoado Bom Jardim:

“Eu fui chamada para dar aula em um projeto do ponto de cultura da Fundação Brandão de Castro. Convidei uma moça que perguntou se ela podia chamar a irmã. Como a irmã, Maria Aparecida, não tinha com quem deixar as crianças, ela trazia todo mundo. Primeiro, a filha mais velha pediu para participar. A outra menor também quis. Aí o rapazinho, treze anos na época disse: “Eu fico aqui sem fazer nada. Deixe-me pegar uma almofada também”. Respondi: “Mas você é um rapaz!”. Ele falou que ficava ali só paquerando as meninas e que queria aprender também. Comecei a deixar, mas ele não trabalha mais com isso porque arrumou um emprego em uma firma fora do município” – conta a rendeira.

Atualmente, Maria Aparecida e a filha mais velha são professoras. Cida dá aulas para duas turmas de adolescentes. As sementes plantadas por Domingas não param de crescer tanto em âmbito comunitário quanto pessoal. Graças a renda de bilro, ela conseguiu formar Alane, em serviço social, e Aline, em ciências biológicas:

“Foi com o dinheirinho da renda que eu paguei a mensalidade da universidade por quatro anos e ainda fizemos a formatura de Alana, que hoje trabalha no Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) de Poço Redondo e está se preparando para o concurso de Paulo Afonso (BA). Eu não comprava praticamente nada para mim. Com o trabalho dela, minha menina pagou a pós-graduação” – conta.

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Quando a filha do meio disse que pretendia estudar biologia, Domingas disse para ela conseguir um financiamento, pois o que recebia como artesã daria para pagar o aluguel e a alimentação que permitiriam ela frequentar a faculdade, em Paripiranga, cidade baiana a 154 km de distância.

“Para poder bancar essa despesa, eu participava de eventos e feiras. Aline está formada há um ano e está procurando emprego” – diz

O filho mais novo concluiu o ensino médio. Ele ajuda o pai na vendinha de doces, que funciona no mesmo prédio da casa da família. O guri pretende fazer curso técnico de informática, mas os planos estão suspensos por causa da pandemia de Covid-19. Mesmo assim, a rendeira não cansa de repetir para ele aproveitar que a mãe ainda está viva e pode ajudar a concretizar o sonho do caçula.

ORIGENS

“Rendilheiras que teceis
As lindas rendas à mão
Eu dou-vos se vós quereis.
Por almofada o coração”

CANÇÃO DAS RENDILHEIRAS
Artur da Cunha Araújo – Portugal (1924)

 A técnica de usar bilros para fazer renda surgiu no século XV, na Europa. Bélgica, França, Inglaterra, Espanha e Itália disputam o pioneirismo. A referência mais antiga, porém, está em um documento de partilha, feito na cidade italiana de Milão, em 1943. A informação consta do livro “A renda de bilro e sua aculturação no Brasil”, de Luiza e Arthur Ramos (1948).

Em Portugal, o termo renda (do catalão “randa”, que significa orla) de bilros (utensílios de madeira semelhantes a pequenos fusos) surgiu na segunda metade do século XVI, durante o reinado de Dom Sebastião. Inicialmente bilrear só era permitido em conventos para confecção de peças de ornamentação de igrejas e vestes eclesiásticas. Assim ocorria no Convento de Santa Clara (1318-1892), em Vila do Conde. A tradição foi mantida pelos moradores. Na cidade, encravada na área metropolitana do Porto, existe um museu e uma escola de formação de rendilheiras para crianças e adultas.

 

Foram os portugueses que trouxeram para o Brasil a arte de fazer renda, no período colonial. No século XVIII, os rendados chegaram ao sertão e foram disseminados pelas mulheres dos colonizadores junto às escravas, com o objetivo de ensiná-las a confeccionar enxovais. Estas repassaram adiante os conhecimentos.

A renda de bilro, segundo Maria Domingas, tem importância cultural para Poço Redondo poucos anos depois do surgimento da localidade (1877) como povoado de Porto da Folha, cidade a 66 km de distância. As primeiras rendeiras eram as mulheres ribeirinhas do rio São Francisco. Os moradores mais antigos contam que antigamente toda casa do Poço tinha uma rendeira.

Uma das mais conhecidas é dona Conceição, que esconde a idade, mas os vizinhos revelam ter entre 90 e 100 anos. Artesã desde os oito anos, ela é guardiã de centenas de moldes das peças de renda desenhados em papelões e usados para a confecção. O acervo faz parte do trabalho de seis gerações de rendeiras. Ela, no entanto, não trabalha mais. Alega que esqueceu como é que faz. Outra particularidade da decana é o fato de um tio, um irmão e alguns primos terem se transformado em cangaceiros.

Da relação de artesãs veteranas afamadas também fazem parte dona Cenira, 79 anos, citada em um livro que conta a história das rendeiras ribeirinhas e parceira de trabalho de Domingas; Leopoldina e Carmosina, ambas falecidas; e Mariá, que deixou a atividade apesar de ser conhecida por seus trabalhos finos e delicados.

É consenso que os trabalhos mais antigos são mais ricos em detalhes e sofisticação, mais trabalhosos. Portanto, mais valorizados. Embora as rendas de hoje sejam feitas da mesma forma – almofada, bilro, papelão e linha – elas não trazem mais as características marcantes de uma região.

“O bordado que era feito no passado conta uma história. Em qualquer lugar era possível identificar a produção de Poço Redondo” – afirma Maria Domingas.

A rendeira acrescenta que embora alguns designs atuais façam a artesão quebrar a cabeça, ficou bem mais fácil trabalhar. Hoje é possível buscar um molde na internet, tirar xerox da renda e trabalhar em cima do desenho. No passado, uma peça era feita no “pique”, furinhos de papelão feitos com espinhos de mandacaru, que serviam de marcação para confecção da renda.

A renda de bilro, nas últimas duas décadas, chegou a correr o risco de extinção no sertão sergipano. A ação de entidades governamentais, universidades, ONGs e fundações foram fundamentais para sua preservação, pois realizaram e ainda oferecem cursos gratuitos para mulheres de todas as idades. Alguns ofereciam, além das aulas, alimentação e ajuda de custo. As professoras locais também eram remuneradas.

INVESTIMENTO INCIAL

“Mulher rendeira lá do Ceará
Vive a fazer renda pros outros comprar
Mais só ela sabe o trabalho que dá”

RENDEIRA DO CEARÁ
  Carrapeta

Para levar adiante a profissão de rendeira, após a conclusão do curso, é preciso investir, no mínimo, cerca de 210 reais para adquirir o material necessário. Uma almofada com dois forros, dependendo do tamanho (pequeno, médio ou grande) custa entre 30 e 50 reais. O primeiro forro é um saco desses usados como pano de chão, vendido nos mercadinhos. Ele é preenchido com capim ou palha de bananeira. Por cima, é feito um segundo forro de chita estampada. Segundo Domingas, o tecido colorido é mais alegre e bonito:

“Trabalhar com a almofada toda branca não anima muito” – complementa.

Profissionais mais antigas possuem de três a dez almofadas de diferentes tamanhos.

Experientes rendeiras dizem que o número mínimo de bilros necessários para fazer uma peça peças pequenas como tranças ou palmas (um tipo de cactos) são quatro. No entanto, uma profissional precisa ser ao menos duas dúzias para poder fazer trabalhos um pouco mais complexos. Em Poço Redondo, o único artesão que faz as peças de madeira é seu Zé Lemos. Elas custavam três reais cada.

Embora no início da carreira, muitas profissionais utilizem a almofada no chão ou um tamborete de cabeça para baixo para apoiá-la, o ideal é ter um suporte de madeira, vendido na cidade por 40 reais, em média.

Outros apetrechos necessários são os novelos de linha – as mais usadas são da marca Cléa -, comercializados a 14 reais, cada, no Poço (na internet custam 10 reais e 90 centavos); pedaço de papelão, tesouras (as de costura profissional são vendidas por 40 reais) e espinhos de mandacaru retirados diretamente do cactos ou alfinetes com cabeças coloridas, cuja cartela com 40 é negociada por 2 reais. As artesãs nordestinas preferem os espinhos. Os mais finos para fazer a renda; os grossos servem para escora dos bilros e para prender o papelão na almofada. O trabalho fica mal feito se usar os grossos para fazer a renda.

“Com isso se dá a partida. Se a pessoa tiver paixão não para nunca de trabalhar” – afirma Domingas.

Toda renda de bilro demora para ser concluída. Uma blusa de renda consome de quatro a seis horas diárias e fica pronta entre 25 e 30 dias. A lida de um mês é vendia por 200 reais, abaixo da precificação definida pelas entidades e órgãos governamentais que patrocinam os cursos. Tem gente que ainda acha caro.

Para reduzir o tempo de produção, as rendeiras costumam dividir o trabalho. No caso de Cenira e Domingas, elas dividem a tarefa em quatro partes. Cada uma concluí duas. A estratégia é utilizada nas raras vezes, hoje em dia, em que são feitas grandes encomendas.

Certa vez uma encomenda de 10 insetos (libélulas, mariposas e cascudos) de renda fez as artesãs pedirem reforços. Alane foi a primeira a embarcar na empreitada. Mesmo assim, o tempo era curto. Foi aí que Domingas convenceu a filha mais nova, Aline, a se integrar à equipe. A jovem só fazia peças pequenas.

Trabalhos grandes são difíceis de vender, mas muitas vezes vão parar no exterior. Bolsas e luminárias feitas para o projeto Origine-se, do IPTI (Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação) foram vendidas para um cliente, em Londres (Inglaterra). A bolsas com gotinhas de renda também foi parar na Europa. A rendeira lembra de quanto recebeu (300 reais), mas esqueceu em que país elas foram parar.

“O que vende aqui são pulseiras, marcador de páginas, tiaras, presilhas, panos de bandeja e renda a metro, negociadas entre 20 e 40 reais. Os trabalhos maiores levam um ano ou mais para serem comercializados” – diz.

Para tentar melhorar os negócios, Maria Domingas resolveu criar uma página no Instagram , onde expõe os trabalhos. Em janeiro passado, abriu página no Facebook.

A atividade de rendeira tem avanços e retrocessos na região. No final do ano passado, foi inaugurada a sede e concluída a reforma do Ateliê Flor de Mandacaru, em Sítios Novos, com recursos do Ministério Público do Trabalho. No local, serão ministradas oficinas para crianças e jovens. A boa notícia, no entanto, foi interrompida pela pandemia de Covid-19.

COVID-19

As sanfonas, zabumbas e triângulos estão em silêncio. Teoricamente, só mercados e farmácias podem abri no Poço. No entanto, o hábito de anotar em fichas o valor das vendas fiadas faz com que nos dias de pagamento da prefeitura, lojinhas coloquem as portas de aço a um palmo do chão para que os comerciantes possam receber o que lhes é devido.

O cartório da cidade fica com a portada arriada, mas se alguém precisar emite um documento. O movimento do comércio caiu cerca de 90%. Raras vezes alguém adquire um doce, um sorvete, uma garrafa de água ou um refrigerante. Da movimentada feira, restam apenas as barracas de frutas, verduras e carnes. As de roupas, brinquedos, calçado estão fechadas. Feirantes idosas não estão armando suas bancadas.

Há quem tenha ainda uma tarefa adicional: conter os pais idosos dentro de casa. Domingas confessa que anda agoniada, vigiando a família:

“Meu pai passou dos 80 anos faz tempo. Minha mãe é diabética, hipertensa, cardiopata e tem problemas de varizes. Meus irmãos estão todos em São Paulo. Eu é que cuido deles. O pai fica pedindo para dar uma voltinha, ir na lotéricas jogar na Lotomania. Eu digo que não pode, ele insiste. Só sossegou quando eu disse que quem pega essa doença (Covid-19) só vive quatro dias. Aí ele respondeu: “Vou mais não, minha filha. É muito pouco”. É uma resenha e dá o dobro do trabalho” – admite.

A crise na saúde pública, porém, não impede as artesãs de fazerem planos. Um deles é criar uma espécie de museu da renda, em Poço Redonda, quando tudo estiver passado. Conceição, Cenira e Domingas possuem moldes de papelão com mais de 100 anos de existência. Cada uma delas também chega a ter uma dezena ou mais de almofadas e rendas. A esperança é contar com a ajuda da prefeitura, até hoje inerte. Tanto é que o centro de artesanato, na saída para Canindé, está fechado por falta de apoio há meses.

O distanciamento social também faz dona Maria lembrar do tempo em que frequentava, ao mesmo tempo, os cursos de renda de bilro e bornal.

“Meu marido dizia que eu ia malucar. Eu respondia que amava ser rendeira. Agora, ele às vezes olha para as meninas e diz: “Vocês têm estudos assim, agradeçam a sua mãe e a renda de bilro. Eu falo: Eu não sou mais louca, não sou mais doida.” – conta e dá um sorriso triunfante.

–*–*–

SERVIÇO

Telefone e zap de MariaDomingas Santos: (79) 9 9909-2112

 

AGRADECIMENTO

Meus Sertões agradece a colaboração de Angelina Nunes na realização desta reportagem

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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