A lapinha de Inês

Dona Inês Carneiro de Almeida, 80 anos, este ano levou dois dias para armar a lapinha (abrigo, gruta, presépio) que enfeitará a casa dela no Natal. Foi um trabalho metódico, no qual utilizou pedras, blocos (tijolos), isopor, tocos e jericó, vegetação da caatinga conhecida como planta da ressureição – ela se fecha e aparenta estar seca no verão e se abre com a coloração bem verde com os primeiros pingos de chuva.

No passado, a dona de casa passava até sete dias, enfeitando a lapinha. Segundo o neto Edcarlos Almeida o processo de montagem consiste em por pedras e tijolos e cobri-los com as plantinhas, pintadas nas cores verde, amarela e dourada:

“Ela faz aqui, desmancha ali. Põe uma pedra de um jeito, muda. Coloca uma galha de árvore e troca de lado. Roda em torno do presépio até ver onde cada peça fica em melhor posição. Quando o cenário está pronto, utiliza enfeites de argila (carneiros, bois, jumentos, galinhas e patos) e bichos feitos de búzios ou de resina (saqués e gansos). Ainda tem as casinhas de barro e miniaturas de papelão e isopor. Ela é uma artesã bem criativa, que transforma qualquer coisa em arte” – diz o jovem.

Este ano, dona Inês estava preocupada por não saber se conseguiria manter a tradição de Ichu, sua terra natal, localizada a 180 quilômetros de Salvador (BA). Ela temia que a cirurgia para tirar um cisto do seio, feita recentemente, impedisse a realização de um trabalho que começou a fazer quando tinha oito anos.

As primeiras lapinhas eram bem menores do que a de hoje, que possui 1,5 m (metro) de largura, 2 m de comprimento e 1,2 m de altura. Eram feitas atrás de uma porta, pois sua mãe Maria Matilde Carneiro, a Mariquinha, era responsável por montar o belo presépio que ocupava um bom espaço na casa da Fazenda Aleluia, onde a família morava.

Só depois de se casar e se mudar para a Fazenda Massapê, Inês, aos 18 anos, conseguiu fazer a lapinha do jeito que sonhava: bem grande.

Havia uma outra lacuna a ser preenchida antes do casamento com José Jaime de Almeida, hoje com 86 anos. É costume em Ichu, cidade com cerca de 6.200 habitantes, sendo 72% católicos, os filhos herdarem os santos que os pais cultuavam e manter a devoção.

Só que quando ficou órfã de pai (Antônio Pio Carneiro) e mãe, os irmãos não deixaram Inês pegar nenhuma imagem dos santos da família – São João, Nossa Senhora da Conceição, São José, São Pedro. Eles alegaram que ela não tinha filhos para cantar as ladainhas. Restou à jovem, recém-casada, adotar a devoção ao Ofício da Paixão de Cristo, restrito à Quaresma e para a qual só havia reza e palavras.

presépio sertanejo
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Logo depois, Inês soube que o marido, que também já não tinha os pais (Epifânio Rufino e Salvadora Carneiro), herdara a imagem de Deus Menino, feita em madeira há quase um século.

José Jaime não sabe onde a escultura foi adquirida. Suspeita que tenha sido em Candeias, a 125 quilômetros, onde os antigos moradores de Ichu iam pagar promessas a pé e lá “trocavam” os santos.  Os mais velhos usavam o verbo trocar e não a palavra comprar porque consideravam que havia troca de dinheiro pelas imagens sacras.

Pois bem, o Menino Deus, personagem principal do presépio de Dona Inês, só é colocado na lapinha na noite do dia 24 de dezembro. Todo ano ele veste uma roupa nova feita pela dona da casa.

O pequeno Cristo também é fundamental para uma tradição que os ichuenses seguem sem saber como e por qual motivo foi criada. Em um passado não muito distante, no primeiro dia do ano novo, ao meio-dia, as famílias pegavam o Deus Menino deitado na manjedoura e o colocavam em pé. Nesta hora, as famílias louvavam o nascimento de Jesus, faziam orações e soltavam muitos fogos. Atualmente, o povo ainda “levanta o santo”, mas só os fogos o saúdam.

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(*) Com apuração e fotos de Edcarlos Almeida, parceiro e amigo de Meus Sertões, além de responsável pela página Hô Sertão, no Facebook.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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6 respostas

  1. Fantástica matéria sobre a lapinha, é uma pena ver aqui no meu município desaparecem esta tradição natalina, onde as famílias que faziam todo ano agora não querem mais levar a tradição para as gerações futuras. Lamentável.

    1. Nossa alegria é poder registrar o que ainda está preservado e, se possível, resgatar fatos e memórias relevantes para os sertanejos (as). Muito obrigado por nos estimular a continuar com nossos propósitos.

  2. É reconfortante ver devoção e tradição cultuadas. Parabéns a equipe de Meus Sertões por garimpar preciosidades capazes de despertar em nós memórias quase adormecidas.

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