Assentamento Maria Zilda

O assentamento Maria Zilda, a dois quilômetros do centro de Cordeiros (BA), tem esse nome para homenagear a agricultora assassinada por jagunços que atacaram o acampamento do MST, próximo à Fazenda Caldeirão, em Vitória da Conquista, em outubro de 1994. Além de Zilda, um sem-terra foi morto e seis ficaram feridos no ataque para impedir que a propriedade, identificada pelo Incra (Instituto Nacional de Reforma Agrária) como improdutiva, fosse desapropriada. A ação violenta não impediu a expropriação.

Situação bem diferente ocorreu na Fazenda Alegria, uma década depois, com a desistência do proprietário de tocar adiante o imóvel rural que representava o berço da oligarquia que dominou anos a fio o cenário político-econômico dos municípios de Condeúba e Cordeiros, no centro-sul baiano. O processo começou no dia 22 de dezembro de 2003, com a publicação do decreto declarando os 5.408 hectares da fazenda como de interesse social para fins de reforma agrária.

No dia 22 de abril de 2005, o Incra concluiu o trabalho, mas desde o ano anterior 54 famílias, incluindo antigos funcionários da fazenda, cuidavam da fazenda. Quinze anos depois de um caso de desapropriação solucionado sem conflito, Meus Sertões visitou o assentamento que homenageia uma mártir do movimento sem-terra para mostrar como é a vida dos trabalhadores rurais no local.

Os primeiros vestígios da produtividade do assentamento foram encontrados no mercado municipal de Cordeiros. Na primeira banca de madeira, onde se lê “Lurdes assentamento” havia cenouras, cebolas e duas melancias. Na outra, Gisleide da Silva Lima, a Leide, 35 anos, oferecia as duas últimas dúzias de ovos caipiras das galinhas poedeiras que cria.

Tesoureira da associação dos pequenos produtores do assentamento, Leide aceitou nos ciceronear durante a visita à fazenda. Na conversa inicial, ela nos contou que a antiga Fazenda Alegria é um assentamento modelo, não dividido em lotes. E que foi vista pela primeira vez pelos integrantes do Movimento Sem-Terra, de Vitória da Conquista, em uma fotografia.

Disse ainda que a comunidade enfrenta sérios problemas, incluindo a falta de água e dificuldades para preservação ambiental. Poluição e estiagem afetam o abastecimento. Sementes de eucalipto, cujas plantações avançaram nas últimas décadas no entorno da propriedade, se espalharam de tal forma que impedem o acesso às três nascentes da região.

O JEGUE E A CASA GRANDE

A primeira visão que temos na fazenda é a de um jegue amarrado a uma árvore sem folhas. O animal pertence a Zenildo Batista Cardoso, 60 anos, que veio de Barra do Choça, a 193 quilômetros de distância, para se habilitar a uma vaga no assentamento. Zenildo chegou um ano depois dos primeiros assentados.

“Aqui foi fácil de entrar. Não foi agressivo. Quando entrei, o fazendeiro já tinha liberado. Antes, eu já tinha entrado em cinco fazendas. Passei por cinco acampamentos. Eu ia ficar em uns assentamentos para lá, em Vitória da Conquista. Fiquei três anos acampado em uma fazenda, esperando outro assentamento para entrar. Vim aqui, gostei da região e fiquei.” – conta o trabalhador rural, que produz feijão, banana e cana “quando o tempo ajuda” e cria cinco vacas leiteiras e o jumento velho.

A estiagem tem castigado Cordeiros há cinco ou seis anos, na conta que a memória falha de Zenildo permite fazer. Ele mantém o gado com palma e com “o capinzinho da beirada de rio”, que a bem da verdade estava seco.

“O leite é pouco para vender. Só dá conta do bezerro porque o gado aqui não é bom e a região não ajuda” – diz o criador.

Zenildo não pensa em sair do assentamento. Foi difícil concretizar o sonho de arrumar uma terra. Agora, ele fica sem jeito de desistir. O ganho, quando tem, vem da roça.

Andando pela vasta propriedade passamos por dois tratores, casas, o portal com o nome do assentamento praticamente apagado, sementes de imburana espalhadas no solo, a capela Nossa Senhora da Vitória e o casarão em estilo colonial. No depósito anexo, que no passado servia de senzala, o madeirame grosso e escoras sustentam o telhado. O cômodo está vazio. Nos fundos, existe uma estrutura para lavagem de veículos.

A casa grande, cuja construção teria ocorrido no século XIX, possui dezenas de cômodos. Alguns estão intransitáveis. E embora haja sala para reunião dos integrantes da associação dos pequenos produtores, o local está infestado de morcegos. O mobiliário que resiste é uma mistura de estilos. Vale lembrar que algumas pessoas foram abrigadas no casarão nos primeiros anos do assentamento.

Muitas lendas povoam o antigo imóvel.  Há quem diga ser possível ouvir os gritos dos escravos que foram torturados no local. A crença de que haveria ouro e prata escondidos nas paredes também levaram algumas pessoas de fora da comunidade a esburacar o prédio em busca de tesouros.

A presidente da associação de produtores Maria de Lourdes de Jesus Trindade revelou que existe um plano de transformar o casarão em um hotel-fazenda, mas que tem tido dificuldades para encontrar investidores.

Lourdes morou em São Paulo por 36 anos. Em 2007, quando a sogra morreu, o marido resolveu voltar para a casa de adobe da fazenda. Ela se queixou da escassez de água e da promessa não cumprida de um deputado de abrir um poço na comunidade.

“Aqui nos falta assistência técnica rural e estamos na lista para receber uma cisterna, mas não há data para isto. As visitas do Incra estão cada vez mais esparsas. Para piorar a água da Barragem de Condeúba, que nos abastece, não está prestando. Não passa nem no filtro de tanto resíduo que tem” – enumerou.

PRODUÇÃO DE CACHAÇA

No artigo “As complexidades marcam o quadro agrário do Brasil: um olhar reflexivo do assentamento Maria Zilda, em Cordeiros (BA)”, de 2006, a geógrafa Ana Paula Novais Pires entrevistou funcionários da família dos primeiros donos da fazenda: o coronel José Moreira Cordeiro, conhecido por coronel Zezinho, e a mulher Dejanira, filha de um rico fazendeiro escravagista.

Cinco dos seis filhos do casal morreram e a única herdeira foi a filha Mercedes. Por sua vez, ela casou com o caixeiro-viajante, médico autodidata e futuro prefeito de Condeúba, Joaquim Mutti de Carvalho, com quem teve três filhos. Na velhice, o casal foi morar em Salvador, onde morreu.

Por fim, a fazenda pertencia, segundo Ana Paula, a um deputado que a via apenas como “dote”. Sob a orientação da Comissão Pastoral da Terra, as terras foram parcialmente ocupadas e o proprietário aceitou negociá-la com o Incra.

Quando visitou o assentamento, Ana disse ter 54 famílias assentadas – atualmente são 24 – e ressaltou que não havia escola para as crianças na propriedade, situação que não foi alterada.

“A vegetação encontrava-se preservada (…) Nas áreas de uso do solo para agricultura, destaque para a pastagem (…) e os cultivos de feijão, mandioca, milho e hortaliças. Destacavam-se, ainda, a pequena criação de bovinos e equinos que servem no processo de manejo do solo” – acrescentou

A geógrafa observou a existência do projeto de um pequeno engenho para produção da rapadura e melaço, visando melhorar a renda dos assentados.

O agricultor Lindauro Gomes de Oliveira, 52, mora e trabalha na fazenda há pelo menos 40 anos. Ele disse que a usina já existia bem próxima à casa grande. Na época dos fazendeiros, produzíamos 1.500 litros de cachaça por dia.

“Esse trem aqui rodava dia e noite. Usava quatro alambiques de uma vez. O antigo dono tentou produzir álcool combustível, mas não conseguiu. O bicho saiu forte, 90 graus, só que amarelo. Não saiu como devia. Aí, ele desistiu do processo e desmanchou tudo. Nós resolvemos botar o alambique para funcionar de novo mais adiante e fazer cachaça mesmo”, contou.

Seis pessoas trabalham na usina atualmente. Três enfrentavam o calor externo e o que vinha da caldeira no segundo sábado de outubro. Além de Lindauro, tocavam a produção Jilmar Paraguai Filho, 46 e Admílson José Donato, 37.

A capacidade atual é de 100 litros de cachaça diários, mas a maior preocupação é a proibição de manter a plantação em Área de Proteção Permanente (APP).

“É o único local que dava para plantar, mas agora não pode mais. Enquanto tiver cana, a gente vai tirando. Vai chegar o dia que não existirá mais nada” – lamentou Lindauro.

Os produtores também encontram dificuldade para colocar o produto no mercado regional por não ter marca registrada.

“O que mata é isso. Você tem que vender quase de graça para quem chega. Nós não temos condições de fazer o registro, o processo é muito caro. O que tiramos aqui é insuficiente para pagar. Vale mais o bagaço e a palha que damos para alimentar o gado do que a própria cachaça. A ração serve de alimento para cerca de cem cabeças de gado e outros 20 animais (cavalos, éguas e jumentos)” – acrescentou o produtor.

Os atravessadores pagam entre R$ 2 e R$ 2,20 por litro de cachaça que são revendidos por cinco vezes mais.

A meta dos produtores era criar uma cooperativa como a Codecana, da cidade de Ipirá, que também fabrica rapadura. Para isto, seria preciso ampliar a plantação e a produção. No entanto, 60% da Fazenda Alegria têm solo pedregoso e infértil.

Os trabalhadores contam que investiram mais de R$ 7 mil para colocar a usina para funcionar. Hoje, precisariam no mínimo de o dobro. O trabalho começa às 5h e termina às 19 horas. As espécies de cana do assentamento são a Piogi, Uva e 190.

DE PIRIPÁ PARA CORDEIROS

Adão José Lima, 88 anos, e a mulher Joana, foram os únicos agricultores familiares de Piripá, a 46 quilômetros de Cordeiros, que aceitaram o desafio de deixar a cidade para serem assentados na Fazenda Alegria. Seu Adão acredita que os outros companheiros convidados não quiseram vir porque não tinham coragem para trabalhar. Ele lembra que deixou a terra natal porque não encontrava mais serviço na roça.

“Valeu a pena. Logo que cheguei aqui o tempo estava bom. A gente batia feijão adoidado. Era um farturão. Minha mulher cuidava da horta e eu plantava milho e feijão. Agora, com esse tempo ruim (pouca chuva) tudo diminuiu. Eu criava uns animais também, mas só ficou um cavalo para carregar o que ainda dá para tirar da terra” – contou o trabalhador rural mais idoso do assentamento.

Adão começou a trabalhar na roça com oito anos. Quando o pai morreu, ele ficou responsável pela mãe e os dez irmãos. Hoje, só ele e uma irmã estão vivos. O lavrador lembra com alegria das festas de Reis, quando cantava e tocava cavaquinho.

Frequentar a capela de Nossa Senhora da Vitória e as reuniões com o povo do Incra eram outras atividades que serviam para distrair. Seu maior sonho era poder voltar a trabalhar como antes, “mas o corpo não dá mais”.

Adão e Joana são os pais de Leide. Simpática e bem-humorada ela enfrenta as dificuldades, sem se abater. Na associação, na função de tesoureira, cabe a ela receber os R$ 5 mensais de cada assentado. O dinheiro é pouco, mas dá para as despesas básicas da entidade.

Leide e o marido João Trindade Costa criam galinhas poedeiras de raça, compradas em Goiás. Atualmente, possuem um macho e 120 fêmeas, que põem entre 60 e 80 ovos por dia. Eles são vendidos no mercado municipal. Foi João quem construiu o telhado, o criatório e o poleiro. As aves chegam a pesar quatro quilos, cada, e se alimentam com ração balanceada para não enfartar. O casal planeja ampliar o número de aves para ampliar a produção.

 

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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