Pré-história

Ponto de apoio mais próximo para quem visita o Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, o distrito de Sítio do Mocó (a 12 quilômetros de Coronel José Dias) lembra uma cidade cenográfica de filme de ficção.

A aridez sertaneja e a magnitude das rochas da Serra Talhada ao redor são prenúncio do que saltará aos olhos do visitante daí por diante. Paisagem repleta de paredões com formas gigantes esculpidas pela natureza ao longo dos tempos induz à visualização de figuras que lembram humanos e animais.

Na hora da sesta, o povoado dorme – são cerca de 500 moradores. Nem calango se mexe sob o sol inclemente do sertão piauiense. O calor e a altitude parecem desafiar aquele que ali está para conhecer de perto importantes sítios arqueológicos e desfrutar do privilégio de contemplar uma bela vista, seja ao pé ou no topo de uma serra.

SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS

Declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em 1991 e tombado pelo Iphan em 1993, o Parque Nacional Serra da Capivara é um museu a céu aberto em meio à caatinga. Um deleite para admiradores da natureza e/ou pesquisadores ávidos por conhecimento.

Situado a 530 quilômetros de Teresina (PI) e 300 de Petrolina (PE), compreende uma área de 129.678 hectares, que se estendem por quatro municípios: Coronel José Dias (70%), São Raimundo Nonato, Brejo do Piauí e João Costa (os 30% restante). Foi criado em 5 de junho de 1979, por decreto presidencial, para proteger o patrimônio pré-histórico e cultural, assim como os ecossistemas locais.

O parque, administrado pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), abriga a maior concentração de sítios arqueológicos das Américas atualmente. São 1.220 cadastrados.

“Cerca de 180 estão abertos à visitação, muitos estruturados com escadas e passarelas. dezessete possuem acesso para portadores de necessidades especiais”, diz Carlos Gadelha, técnico em conservação e guia.

MACHADINHA

Abrigos também guardam indícios da existência do ser humano pré-histórico na região, possibilitando uma releitura da chegada homem ao continente. A descoberta de inscrições rupestres onde fica a Pedra Furada indica o povoamento há 100 mil anos, dando origem à teoria de que o homem teria aportado na América do Sul pelo Atlântico, vindo da África.

Machadinha de 9.600 anos encontrada na Serra da Capivara. Foto: Josélia Ribeiro
Machadinha de 9.600 anos da Serra da Capivara. Foto: Carlos Gadelha

Os principais sítios estão situados no município de Coronel José Dias, segundo Gadelha. Entre eles, o do Meio, encontrado em 1973, e o do Boqueirão da Pedra Furada, escavado entre 1978 e 1988.

Localizado sob rocha e rodeado por caatinga arbustiva, o Sítio do Meio é considerado um dos mais importantes da arqueologia mundial. Lá, foram achados o mais antigo artefato de pedra polida das Américas, uma machadinha que data de 9200 anos atrás, e um fragmento de cerâmica, de 8960 anos, ambos em exposição no Museu do Homem Americano.

O do Boqueirão da Pedra Furada reúne o maior número de painéis com inscrições rupestres no mundo (mais de 1.100 pinturas). Entre elas, destacam-se a do veado fêmea com o filhote, que é o símbolo do parque nacional, e a cena denominada “O Beijo”.

MUSEU

Situado em São Raimundo Nonato, o museu oferece ao visitante uma boa amostra do que pode ser encontrado no parque. Conta com recursos multimídia, como audiovisuais, mostra de artefatos e réplica de fósseis.

Um telão gigante exibe, em slides contínuos e fundo musical instigante, imagens de diferentes pinturas rupestres que contam a história de vida e hábitos do homem no continente americano. Cenas de caça, sexo, dança, guerra e outras traçam o panorama das ações e do cotidiano do ser humano pré-histórico.

No acervo, há peças líticas e cerâmicas, adornos, machados milenares, esqueletos, urnas funerárias e outros objetos oriundos das escavações em sítios do parque.

O equipamento foi estruturado pela arqueóloga e pesquisadora Niède Guidon, 82 anos, também precursora do Parque Nacional Serra da Capivara, da Fumdham e de todo o trabalho arqueológico ali desenvolvido.

ARTESANATO

Instalada há 24 anos na comunidade de Barreirinho, no interior do parque, a Cerâmica Serra da Capivara funciona como um cartão de visitas do Piauí. Peças produzidas e estampadas com a reprodução de figuras de pinturas rupestres são vendidas para o mercado brasileiro e exportadas para países como Itália, Espanha e Estados Unidos.

O negócio, criado pela Fumdham e depois repassado à iniciativa privada, inclui um restaurante e um albergue situados no mesmo local, garantindo emprego e renda para cerca de 60 pessoas, segundo Girleide Oliveira, administradora do empreendimento.

“Na elaboração dos objetos, propriamente, trabalham 30 artesãos, e a produção mensal é de 5 mil a 8 mil itens” – informa.

Dois tipos de argila são usados no processo: a escura, encontrada no povoado onde fica a fábrica; e a clara, da comunidade de Cambraia, município de João Costa.

Segundo o ceramista Antônio Francisco Ferreira da Silva, 45 anos,19 destes trabalhando no local, a primeira queima do barro ocorre a 800 graus e dura de 8 a 10 horas. Depois de assadas, as peças ficam vermelhas, recebendo um esmalte (composto de feldspato, valim, quartzo, calcita e pigmentos como titânio etc).

Em seguida, elas voltam para uma segunda queima, a 1240 graus (entre 12 a 16 horas).

“Trata-se de uma etapa gradativa, em que o ponto de fusão é o que garante a tonalidade das peças. O forno, a gás GLP, é construído com material refratário para a calor não exalar” – explica Antônio Francisco.

Do começo ao final do processo são empregados de cinco a seis dias. São peças utilitárias e decorativas de variados tamanhos, nas cores azul, verde-folha, bege e branca, vendidas na região, em feiras de artesanato Brasil afora e lojas como Tosto, Pão de Açúcar e Etna.

Em Salvador, dois restaurantes brindam os clientes com o prazer de saborear itens da sua culinária em pratos de cerâmica da Serra da Capivara. Um deles fica no Terreiro de Jesus, no Centro Histórico, segundo Girleide.

CAPADÓCIA NORDESTINA

Localizada no lado oposto ao setor de Pedra Furada, a Serra Vermelha é um capítulo à parte. O relevo diferenciado associado ao pôr do sol resulta num cenário que parece transportar o visitante para a Capadócia (Turquia). Lá, como nesse núcleo do Piauí, as formações geológicas são uma característica marcante.

Baixão das Andorinhas, Serra Vermelha, desfiladeiro onde se pode assistir ao espetáculo da volta dessas aves para a caverna. Foto: Josélia Ribeiro
Baixão das Andorinhas, na Serra Vermelha, desfiladeiro onde se pode assistir ao espetáculo da volta das aves para a caverna. Foto: Josélia Ribeiro

Iluminado pelos últimos raios de sol, o Morro do Pote fica “banhado de ouro” diante de elevações montanhosas que, invariavelmente, induzem ao silêncio. Pertinho dali, todos os dias, por volta das 17h30, no local conhecido como Baixão das Andorinhas, a natureza também convida para mais um espetáculo: o voo sincronizado das aves ao mergulhar no cânion onde se abrigam à noite.

Admirar a sequência de cenas e ouvir o som que elas produzem são parte de uma experiência difícil de traduzir em palavras.

CAMINHADAS

O parque compreende 14 circuitos com várias trilhas preparadas para visitação. Trekkings são considerados de leves (cerca de 20 minutos) a pesados (mais ou menos seis horas).

“O que determina esta avaliação não é apenas a duração de tempo, mas os diferentes graus de dificuldades enfrentados”, antecipa o guia Jair Miranda, morador do Sítio do Mocó.

Uma das mais interessantes é a Trilha Interpretativa Hombu, que abrange tocas com pinturas rupestres e outros achados arqueológicos ao pé e no entorno da Serra Talhada. Ela pode ser feita em duas etapas: a mais puxada inclui uma subida de 150 metros. Destes, 76 são feitos por escadas metálicas morro acima.  A subida não é recomendada para pessoas com problemas de saúde, como os cardíacos.

No topo, o” sacrifício” é completamente esquecido diante da vista panorâmica que se descortina. A descida em meio à vegetação característica da caatinga, com alguns exemplares devidamente identificados, é um presente a mais para os interessados em conhecer a flora da região.

Joselia Ribeiro Contributor

Nasceu em Teodoro Sampaio (BA), cidade do recôncavo com ares de semiárido. Com 12 anos, tinha uma oratória de impressionar os adultos. Flertou com o teatro aos 20, mas optou pelo jornalismo. Atuou em rádio, TV e jornais impressos na capital baiana e no interior. Adora caminhar – parques, chapadas, sertões… – e escrever apenas sobre o que quer. Perfeccionista ao extremo, sonha “curar-se” e desengavetar os contos que escreve.

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