O padre e o santo

O sergipano José Vasconcelos dos Santos estava namorando, “praticamente noivo”, e cursando a faculdade de agronomia quando decidiu entrar para o seminário. A decisão de ser padre foi tomada por não se conformar a exploração do povo, a dominação feita pelos “coronéis” e por ser contra a corrupção.

Como era técnico agrícola podia fazer projetos e fiscalizar a liberação de crédito feita por bancos para proprietários rurais. Passou a receber propostas escusas para assinar documentos confirmando que havia dois alqueires de capim plantado, quando nem metade do serviço tinha sido feito:

“Às vezes o crédito era para compra de oitocentas vacas. O fazendeiro adquiria setecentas e queria que eu assinasse que tinham mais cem. Não aceitei e decidi seguir minha vocação” – lembra.

Padre Vasco, 67 anos, é pároco de Encruzilhada, cidade do sudoeste baiano a 613 km da capital. Sua história, marcada por lutas, passa por Iguaí, Ibicuí, Nova Canaã, Chihuahua (México), Vitória da Conquista, Macarani, Maiquinique, Cândido Sales, Barra do Choça, Itarantim…

Padre Vasco iniciou sua missão inspirado no padre francês Antoine Chevrier, que dedicou a vida aos pobres e à educação de crianças sem recursos, e faz parte do grupo que promove encontros para fazer orações e estudos sobre a obra do religioso.

A convivência com Edivanda Maria Teixeira, que abriu mão dos privilégios de moça de família rica para educar para a liberdade, buscar a justiça social e ajudar a organizar as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) no sertão durante a ditadura militar, e a catequista e animadora de comunidades Aureliana Luzia de Carvalho, a dona Lera, 97 anos, foram estímulos para Vasco nunca desistir de sua opção pelos pobres.

DONA LERA

A admiração do padre por dona Lera é tão grande que ele interrompe a história de como reparou uma injustiça histórica e criou uma igreja para São Benedito, em Encruzilhada, algo que contaremos daqui a pouco, para falar desta trabalhadora rural, catequista e poetisa, com o dom de transformar os encontros das CEB’s em versos. Vasco conta que a conheceu quando era padre novo na região da caatinga, no povoado de Estiva, em Campos Sales:

“Essa mulher é uma escritora autodidata. Os pais não deram escolas por achar que moça não podia aprender a escrever para enviar cartas para o namorado. O pai ia para roça, ela fugia de casa para ficar detrás do muro de uma escolinha para ficara ouvindo o professor lá dentro. E foi assim que aprendeu a escrever” – relata.

Dona Lera e manuscritos. Foto: Comitê Proler

“Ela – prossegue – tinha a história de vida escrita em tantos cadernos e temia morrer e os filhos não ligarem para eles. Aí eu encaminhei o material para a universidade, acompanhamos e ela publicou um livro”.

“Brasileirinho apurado: lembranças da Estiva” foi publicado em 2004, através do comitê Proler da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. A história de dona Lera depois foi transformada em vídeo.

A catequista faz Vasco lembrar do pai, que também se alfabetizou de forma precária. Levou três anos para aprender a ler, pois frequentou a escola em três anos, em períodos de três meses, época em que o sol estava muito quente e não havia trabalho no semiárido.

Outra experiência marcante para Padre Vasco ocorreu no estado mexicano de Chihuahua, onde ele foi aprimorar seus estudos, em 1989.  Lá, na fronteira com os Estados Unidos, trabalhou colhendo maças e peras e irrigando milho para ter algum dinheiro. Também teve contato com a triste realidade dos índios Tahahumara, que significa corredores de pés ligeiros.

Os Tarahumaras. Foto: Luís Escobar
Os Tarahumaras. Foto: Luís Escobar

Habitantes da inóspita cadeia montanhosa Sierra Madre, os nativos desenvolveram a capacidade de correrem até 300 quilômetros por dia descalços e alguns se transformaram em ultramaratonistas devido aos hábitos alimentares e de caçar perseguindo animais até eles se cansarem. Esta característica atraiu a atenção dos narcotraficantes mexicanos, que passaram a utilizá-los como “mulas” para o transporte de drogas para território americano.

“Vi os índios serem exterminados pela droga e pela bebida, Ave Maria!”

SÃO BENEDITO

Padre Vasco assumiu a paróquia de Encruzilhada no dia 11 de outubro de 2014. Vinha da igreja de Santa Teresinha, que atendia a periferia e parte da zona rural de Vitória da Conquista. No primeiro ano, com poucos recursos, conseguiu comprar um computador e reformar os banheiros da paróquia. No segundo, se dedicou a reparar uma injustiça histórica, resultante da opressão praticada pelos “coronéis”.

Encruzilhada começou a ser formada em 1885, a partir de uma selaria instalada no cruzamento das estradas que seguiam para o sudoeste da Bahia e para Minas Gerais. A passagem de boiadeiros e tropeiros se transformou em vila, virou cidade, em 1934, ganhou uma igreja que o povo queria consagrar a São Benedito, santo franciscano, filho de ex-escravos etíopes, padroeiro dos cozinheiros e cultuado pelos negros encruzilhadenses.

Segundo a historiadora Fabíola Araújo, em seu trabalho “São Benedito: Santo ou negro?”, o livro de tombo da Paróquia Nossa Senhora das Vitórias, em Vitória da Conquista, registra no dia 3 de fevereiro de 1905, a existência de um quartinho dedicado ao santo em uma capela em construção, mantida por uma velha africana chamada Benedita, que fornecia o local construído por ela para o padre celebrar missas e administrar sacramentos.

No entanto, apesar da tradição e da vontade do povo, os “donos do pedaço” impuseram uma santa branca, Nossa Senhora de Lourdes, que não poderia ser rejeitada por ser a mãe de Deus.

O povo acredita que como castigo por não terem aceitado o santo, Encruzilhada não ia para frente.

Dez anos depois, houve um grande retrocesso: a cidade perdeu autonomia e passou a ser distrito de Macarani, para onde a imagem de São Benedito, que chegou a ficar um tempo na igreja, ao lado do altar principal, tinha sido levada e perdida a fim de acabar de vez com a pretensão popular de venerar o santo negro.

Padre Vasco ouvira esta história por alto quando chegou à cidade e nunca a tirou da cabeça. O religioso descobriu que havia um terreno doado pela prefeitura à igreja para realização de trabalho social e estava sendo apossado por um morador, depois que uma senhora que vivia ali foi embora. Decidiu, então, construir a igreja de São Benedito ali:

“Comuniquei que a igreja passaria a cuidar do terreno. Fizemos campanhas do piso, do cimento. Um deu parte dos blocos (tijolos), outro, parte da areia. Fizemos mutirão para o reboco e outras partes da obra. O povo fez rifazinhas de lençol, liquidificador, do que podia. O prefeito não deu nada, mas o responsável pelo trabalho de rua emprestou três pedreiros para colocar o piso” – lembra Vasco.

O padre conta que normalmente é feita uma assembleia e votação para escolher o padroeiro das igrejas e capelas, mas não foi preciso realizar este processo porque o clamor popular era grande.

A inauguração foi feita de forma solene, com procissão saindo da matriz de Nossa Senhora de Lourdes e subindo para a parte alta da cidade. Também foi organizada a festa em homenagem ao santo, no dia 5 de outubro, sendo que o Brasil é o único país que celebra o padroeiro dos cozinheiros neste dia por deferência do Vaticano à CNBB. Os demais países o homenageiam o franciscano no dia de sua morte, 4 de abril.

A Comissão de Liturgia da CNBB informa que a alteração foi feita para que a celebração ocorresse um dia depois da festa de São Francisco, uma vez que São Benedito era franciscano e tornou-se um dos santos mais queridos no país, principalmente pelos afrodescendentes.

No entanto, outra versão dá conta que no Brasil, os escravos não podiam comemorar o santo na mesma data que os donos de terras.

Atualmente, é realizada uma missa mensal na igrejinha. Durante os dias úteis, ela é utilizada para catequese e para o grupo de mulheres que reza o terço às sextas-feiras. Está em processo de criação a pastoral da família e o grupo de jovens.

“O povo diz hoje que graças a Deus a cidade recebeu aquilo que a maioria da população sonhava: ter uma igreja de São Benedito. Muitos diziam que o atraso de Encruzilhada era castigo e consideram uma vitória ter um tempo para ele. Uns sugerem até que eu me candidate a prefeito, mas pergunto para eles: “Vocês querem o mal para mim, é?” – comenta Vasco, que se empolga com o assunto.

A questão do preconceito não foi totalmente encerrada. A música de São Benedito é cantada ao som de tambores e no ritmo de xaxado, o que desagrada os mais conservadores, inclusive, participantes do coral da igreja de Nossa Senhora de Lourdes, que se recusam a cantar no novo templo. Nada que assuste ao padre, acostumado com lutas maiores.

 

ATENTADO

A ordenação de Vasco ocorreu quando ele tinha 32 anos e foi enviado para estagiar no município de Iguaí, cujo pároco era um alemão que logo pediu para sair.  O religioso de Lagarto (SE) assumiu inesperadamente a área compreendida por mais duas cidades – Ibicuí e Nova Canaã. Pastorava seu rebanho, em cima de um jipe velho, movido a gás, combustível proibido na época.

Em uma vasta área, os antecessores do pároco visitavam apenas quatro ou cinco povoados e iam lá duas vezes por ano, no máximo, para celebrarem missas. Quem quisesse batizar seus filhos que fosse à cidade. Foi com a ajuda de uma freira que o novo padre começou organizar as comunidades rurais. Criou noventa e uma nos cinco anos passados em Iguaí.

Por conscientizar os trabalhadores e incentivar que eles assumissem o controle do sindicato rural passou a ser ameaçado pelo prefeito, cujo nome não cita. Uma bomba foi jogada na igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, causando danos e quebrando os vidros.

O político arrombava capelas da zona rural, levando um boneco em tamanho natural em um caixão, dizendo que era o corpo de Vasco. Também controlava o movimento no hospital da cidade onde sua filha era médica e mandava dispensar pacientes levados pelo religioso.

“Teve o caso de uma grávida em parto complicado que não foi atendida e teve que ser levada para Vitória da Conquista, em um trajeto superior a duas horas” – conta.

Quando o padre reuniu os 300 trabalhadores que tomaram o controle do sindicato e expulsaram o prefeito de lá, a raiva aumentou. Nem os “coronéis”, nem o prefeito aceitavam a criação de comunidades eclesiais no município, pois isto despertava os trabalhadores rurais na luta por seus direitos. A ponto da prefeitura, bem próxima da igreja, servir de ponto de observação para controle de quem da zona rural fosse até lá.

“Quando a pessoa saía, era abordada e ameaçada de perder emprego ou deixar de receber algo se voltasse a me visitar” – relata.

Como a violência não dava resultado, os poderosos partiram para outra tática: a difamação. Assim como em outras cidades em que os padres organizavam a população e contrariavam interesses da classe dominante, passaram a reproduzir pelos alto-falantes da cidade uma música com letra de duplo sentido, questionando a sexualidade de Vasco.

“Seu vigário, eu não comunguei, eu não comunguei. Sou casado, batizado, mas não comunguei” – tocava sem parar.

Os alcóolatras ganhavam doses de cachaça se cantassem a música quando o padre passava.

Aconselhado pelos fiéis, Padre Vasco recorreu ao juiz da cidade, que proibiu a execução da música.

Apesar da resistência dos trabalhadores rurais, o prefeito foi reeleito e comprou um carro novo. Um mês depois viajou para Salvador, onde foi assaltado e levou dois tiros. O povo viu no episódio um castigo divino.

Represálias também foram registradas em Nova Canaã, onde quebravam mata-burros e bloqueavam cercas para o pároco não passar para a zona rural.

TERRA E ÁGUA

Quando estava no seminário em 1978, Vasco acompanhou de perto o caso da Fazenda Matas do Pau Brasil, no qual os posseiros obtiveram total apoio da Igreja Católica após a prisão de quatro deles.

Assim, no dia 5 de maio, o bispo Dom Climério Almeida de Andrade ordenou que os sinos da catedral tocassem o dobre de finados. Fato que levou a quem ouvia a perguntar quem tinha morrido. E, na missa de domingo, fez a seguinte declaração: “A justiça está morta, posseiros são presos arbitrariamente, a consciência da cidade não pode calar. É preciso acordar, resgatar dignidade e ética”.

Em 1994, quando Vasco atuava na paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro Alto Maron, em Vitória da Conquista, onde na juventude alfabetizava adultos, voltaram a eclodir violentos conflitos de terra no sudoeste baiano no primeiro assentamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), na Fazenda Mocambo. Policiais e jagunços atiraram contra os trabalhadores rurais, o que resultou na morte de Manoel Bastos, 39 anos, e Zilda Maria de Jesus Silva, 51, e em seis feridos.

Foi com estes episódios em mente que o ex-técnico agrícola assumiu a coordenação da Pastoral da Terra e a paróquia de Campos Sales. Logo depois, surgiu o projeto para construção de caixas d’água para guardar água da chuva para consumo humano e produção, tecnologia adotada para facilitar a convivência com as secas no semiárido brasileiro.

As caixas tinham sido criadas por outro sergipano, mas o projeto estava esquecido e era tido como sem importância pelas autoridades. Vasco recebeu o equivalente a R$ 500 deixado de herança por um jovem. Mandou construir quatro caixas d’água em casas no meio da caatinga e estabeleceu que os beneficiados e os interessados deveriam fazer uma caixinha que permitisse a construção de dois equipamentos por mês. Todos aceitaram.

“Eu lembro que em Bom Jesus da Serra, a primeira reunião para fazer duas caixas, todo mundo chegava com um saco nas costas. Aí eu disse: ‘Ave Maria, vou perguntar depois o que isso significa’. Perguntei e eles responderam que  lá quando convocavam que tem reunião assim, a gente já pensava que tinha o prefeito, o vereador porque é a única vez que eles prometem e trazem um fubá para a gente. Mas eu disse: Aqui não tem nada de prefeito, não, menino, vocês vão levar o saco vazio. A proposta é outra. Foi bonito. Aí depois eles riram. E tudo começou.

A paróquia pagou o treinamento dos pedreiros da região, que desconheciam aquela técnica e iniciou o projeto por conta própria. Quando tinha construído 90 unidades, o governo federal assumiu o programa, sem exigir contrapartida. Exigiu, no entanto, que uma entidade com valor jurídico se responsabilizasse pelas construções. Vasco cedeu o CNPJ da igreja de Nossa Senhora das Graças, sabia da importância da construção do equipamento para os moradores das zonas rurais. Mais tarde surgiram entidades que assumiram esta responsabilidade.

LICENÇA MÉDICA

O jeito de lidar com o povo, de brincar com os jovens – a quem chama de “horrorozinhas e horrorozinhos” ­ –, mostrar preocupação com os mais idosos, e de sempre estar disposto a comprar uma briga pela população faz padre Vasco ser muito querido.

A secretária Eliane Aguiar não poupa elogios:

“Ele é um bom administrador, ama a igreja, é humilde e gosta de construir. Difícil encontrar alguém com o mesmo perfil”

Há um mês, Vasco operou o pé, mas está tendo dificuldades com a cicatrização. Ele está de licença para tratamento. Sem a sua presença não haverá festa no dia 1º de maio, em Encruzilhada. Nesta data, o padre completa 35 anos de apostolado.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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5 respostas

  1. Que bela homenagem, merecida. Vasco deixou um legado significativo na formação de jovens na comunidade de Itajaí, município de Nova Canaã. Ele nos ensinou a se indignar com as injustiças do mundo, abriu nossas mentes.

  2. Grande padre ele fez meu casamento em Itarantim, hoje tenho agradecer que abençoou meu casamento, e sou muito feliz, obrigada padre Vasco

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