Entre cobras e insetos: o impacto da suspensão do programa habitacional rural

A preocupação da lavradora Beatriz Oliveira de Jesus, 55 anos, viúva, aumenta quando a noite cai na comunidade de Riacho do Meio, em Ribeirão do Largo, município do sudoeste baiano.

Ela acende o candeeiro e assunta os cômodos da casa de enchimento onde mora com sete filhos e duas netas. Procura insetos e cobras que entram pelos buracos da parede de barro. Certa vez, encontrou uma serpente na cama onde um de seus meninos dormia.

“Quando puxei a coberta, a cobra estava enrolada. Espantei ela” – conta.

Apesar de seus cuidados, a trabalhadora rural acredita que só não acontece nada pior porque ela coloca “na mão de Deus” a vida de sua prole, que tem entre 10 e 21 anos. Na moradia coberta com palha e pedaços de plástico também vivem o filho único de seu primeiro relacionamento, 38, e as netas Manuela, 6, e Ana Bianca, 3.

A terra de Beatriz e de outras seis famílias formadas por seus parentes fica na localidade conhecida pejorativamente como Boqueirão Fogoso, termo usado para designar alcoólatras. Ali, assim como em todo território de Ribeirão do Largo, a subtração é a operação matemática mais utilizada. A começar pela terra deixada de herança pelo avô da agricultora.

Líderes comunitários relatam que originalmente a propriedade tinha 15 hectares. No entanto, a ação de grileiros fez o tamanho ser reduzido para quatro hectares no passar dos anos. O que restou fica em área de declive acentuado, de difícil acesso e que produz café, uma das principais atividades da região, de baixa qualidade. As condições de vida dos moradores são precaríssimas.

A conta de diminuir também é praticada pelo governo federal desde 2016, ano marcado pelo impeachment da então presidente Dilma Roussef e a posse de Michel Temer. De acordo com dados do Senado Federal, de 2015 para 2016 houve uma redução de 61,06% na execução (soma de pagamentos mais restos a pagar) de recursos do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), que engloba o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR).

A paralisação do PNHR em junho do ano em que Temer passou a ser presidente permanece até hoje, deixando milhares de agricultores familiares brasileiros à espera de residências dignas, incluindo as 37 famílias de Riacho do Meio cadastradas e enquadradas como aptas pela Caixa Econômica Federal, de Vitória da Conquista.

Os recursos executados do MCMV foram de R$ 8,06 bilhões, em 2016, o equivalente a 0,3% (R$ 2,7 trilhões) do Orçamento Geral da União. Ano passado caíram para 0,14%.

A medida parou a construção de casas do PNHR na comunidade Barra de Mamoneira, em Boa Nova, outra cidade do sudoeste baiano, prejudicando lavradores como Orlando Cutinga, que mora em uma pequena casa de adobe, sem água encanada, com a mulher e duas filhas.

O trabalho deveria ter sido entregue há um ano. Cutinga, inclusive, pagou a primeira das quatro prestações anuais cobradas aos beneficiados. O valor total equivale a 4% do preço da moradia de 54 m², com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, avaliada em R$ 31.500. O projeto é do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), entidade que organiza o campesinato brasileiro.

GOVERNO FEDERAL

No dia 30 de janeiro deste ano, a oito meses e sete dias das eleições presidenciais, o ministro das Cidades, Alexandre Baldy, anunciou, ao lado de Michel Temer que o governo federal retomaria as contratações do Programa Nacional de Habitação Rural. Porém, não informou quando.

Temer disse que planeja construir 50 mil moradias para trabalhadores do campo, pescadores artesanais, extrativistas, silvícolas, arvicultores, piscicultores, ribeirinhos, quilombolas, povos indígenas e demais integrantes de comunidades tradicionais com renda familiar até R$ 17 mil anuais.

Nos bastidores do ministério circula a informação as 870 entidades habilitadas para a construção de casas do PNHR em todo o país serão convocadas em 20 dias para apresentar a documentação pendente e iniciar o processo de contratação.

“Como estamos em ano eleitoral, os contratos podem ser feitos até julho. No entanto, se o processo começar hoje, as casas levarão pelo menos 22 meses para serem entregues, contando o cumprimento da burocracia, o prazo do repasse financeiro e o tempo das obras” – ressalta o coordenador do MPA na Bahia, Edelson Silva Moreira.

Para quem está na condição dos moradores de Riacho do Meio, um único dia nas moradias sem água encanada, sem energia, sem banheiro e propensa à invasão de insetos e cobras é muito sofrimento.

TRISTE REALIDADE
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CADASTRAMENTO E CORTE

Gilberto Gonçalves Rodrigues, o Beto, 55 anos, é agente de saúde e diretor da Associação de Moradores e Pequenos Produtores da Cabeceira da Sussuarana e Riacho do Meio (Amprosul). Segundo ele, a comunidade tem 68 famílias, sendo que 65 pessoas são filiadas à associação e 45 participam efetivamente das atividades.

Ele acompanhou o cadastramento de trabalhadores rurais no PNHR, desenvolvido pelo Ministério das Cidades e tendo como agente financeiro a Caixa Econômica Federal. As moradias são feitas em sistema de autoconstrução assistida. Paga-se ao pedreiro e os ajudantes podem ser integrantes da família beneficiada ou atuar através de mutirão.

O Movimento de Pequenos Agricultores  atua nas comunidades de Riacho do Meio, Prata, São João e Cedro, assessorando a Amprosul. No primeiro contrato, logo que iniciou o PNHR, as casas tinham 84 m² e custavam de R$ 28.500. Atualmente, o valor passou para R$ 37.859 e a metragem caiu para 55 m², devido ao preço do material de construção.

Inicialmente 42 famílias foram cadastradas para receber moradias no Riacho do Meio, em área considerada de risco. No entanto, a associação foi orientada a reduzir o número para 37.

“Ficaram as famílias que estão enquadradas em uma realidade que deveria ter sido extinta há muito tempo. Os critérios foram muito rígidos porque olhando a comunidade inteira, de Serra Verde para cá, deveriam ser mais de 100 casas. Em toda a região encontramos apenas duas residências que tinham um cômodo de alvenaria” – diz Edelson Moreira.

ESTATÍSTICAS

O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, que reúne indicadores de longevidade, educação e renda, de Ribeirão do Largo é considerado baixo (0,54 em uma escala que varia de 0 a 1). Isto a coloca na 397ª posição entre as 417 cidades baianas. No Brasil, Ribeirão está em 5.325º lugar dentre 5.570 municípios.

Seus números são preocupantes, ainda mais levando-se em conta que houve melhoria entre 1991 e 2010. A renda per capita média é de R$ 271,68 mensais; 45,26% da população se situa na faixa entre extrema pobreza e pobreza; 40,3% dos moradores são analfabetos ou possuem o fundamental incompleto; 44% foram alfabetizados, mas não concluíram o ensino básico.

Os dados mais alvissareiros estão relacionados à longevidade que é de 70,5 anos e isoladamente equivaleria a um índice de 0,759 do IDHM. A mortalidade infantil em dez anos foi reduzida de 113 casos por mil habitantes (1991) para 27,8 (2010).

Beto é responsável pelo acompanhamento de 226 pessoas em Riacho do Meio. O principal problema de saúde são dores na coluna.

“É peso mal pegado. Você vê criança, rapazinho novo sentindo dores na coluna”, comenta.

Outro problema é a esquistossomose. Os rios mais próximos de áreas que utilizam agrotóxicos estão contaminados.

O posto de saúde está a seis quilômetros de distância, no distrito de Nova Brasília. O do centro de Ribeirão fica a 15 km.

O povoado não tem farmácia. Há apenas remédios para dor de cabeça e febre, que são distribuídos gratuitamente pelo agente de saúde.

TRABALHO E EDUCAÇÃO

Praticamente não há emprego em Riacho do Meio. Quando surge trabalho em alguma fazenda, o pagamento é feito por diária, variável entre R$ 25 e R$ 40. A solução é labutar por conta própria ou em família, plantando café. Há ainda pequenas plantações de milho e feijão.

Escolas são duas, de 1ª a 4ª série. Uma tem 20 alunos, a outra, 18. Só em Nova Brasília tem ensino médio. O número de pessoas que saem para estudar fora é baixo. Alto é o número de trabalhadores que vão em busca de emprego na construção civil ou em fazendas de outras cidades e estados.

Não há transporte público. Dois carros particulares fazem a ligação com Vitória da Conquista, cidade polo a três horas de distância por causa da ruindade das estradas.

Se os números em si chocam, o que fazer diante da realidade?

COMIDA É OSSO

Laurinda Oliveira de Jesus, 51 anos, lembra com saudades do tempo em que morou com o marido José Carlos dos Santos, 50, em uma casa de alvenaria em uma fazenda, em Nova Brasília, onde ele trabalhava como vaqueiro.

Nascida em um local que de paraíso só tinha o nome, no município vizinho de Itambé, Laurinda mudou para o Riacho do Meio para dividir parte de um terreno que pertencia à sua mãe Laurita e à sua tia Helena. Lá se vai uma década e meia que mora em uma casa de barro com teto feito com pedaços de amianto e telhas quebradas, sem energia.

É visível que a agricultora que limpava terrenos de outras fazendas e esqueceu do valor da diária porque não encontra trabalho há muito tempo tenta dar toques de dignidade em uma moradia precária.

Foi ela quem afixou um pedaço de papel com um número na porta de casa para oficializar um endereço que os Correios não encontram. Também prendeu com arame no pedaço de madeira do teto o retrato pintado do casal e da filha Laudicéia, 13 anos, encomendando a um caixeiro-viajante.

Pedaços de ossos de boi doados são misturados com feijão. "É o que tem para comer", diz a agricultora Laurinda. Foto: Paulo Oliveira
Pedaços de ossos são misturados com feijão. “É o que tem para comer”, diz a agricultora Laurinda. Foto: Paulo Oliveira

As ações para manter o mínimo de humanidade têm uma inimiga poderosa: a realidade. Em um forno de barro improvisado na cozinha, uma panela está no fogo. Em outro recipiente, ossos de boi. Alguns deles foram misturados ao feijão em preparo para aproveitar a gordura do tutano.

“É o que temos para comer”, diz Laurinda desolada.

Os ossos foram doados por um açougueiro que mora na região. Eles são doados para os moradores de Riacho do Meio raspados, praticamente sem carne.

Sobre a casa do PNHR, ela diz que o marido é quem está cadastrado. Ele tem fé que a receberá um dia. E pretende transformar o local onde moram em um barracão para guardar ferramentas.

PORTINHOLA DE GELADEIRA

Márcia Vargas Dutra, 32 anos, mora com dois filhos: Marlon, 4, e Marcela, 6. O terceiro é criado pela avó, em Ribeirão do Largo. Ela forra as paredes de casa com lençóis para evitar a entrada de besouros e outros bichos no quarto.

Trabalho é raro. Quando aparece limpa pé de feijão e roça. A última vez ganhou R$ 25 em um dia. Da janela feita com uma portinhola de geladeira, ela avista a fazenda em frente, bem diferente de sua realidade: água em abundância, grande área verde, produtividade elevada e uma bela paisagem.

Márcia é vizinha a uma casa de blocos, construída no local pela prefeitura faz tempo. Beto explica que esta foi a única residência, das 30 feitas no município, entregue em Riacho do Meio. Acrescenta que aceleraram a obra para a inauguração e entregaram o imóvel com pintura apenas na parte da frente e com as demais paredes chapiscadas.

“Não deram reboco, não fizeram banheiro, nada” – conta o diretor da associação de moradores.

A renda de Márcia vem do Bolsa Família. São R$ 340. Além disso, ela planta “30 pezinhos de café”. O muito que dá é uma saca anual para consumo próprio.

O vizinho da família Dutra, que não estava em casa no dia de nossa visita, é um dos mais ansiosos com a perspectiva de ganhar nova moradia. Desde o início do processo de levantamento dos beneficiários há dois anos, ele sonha com a nova casa. Em uma tentativa de acelerar a construção, ele usou a enxada como um mouse e a terra como a tela para riscar no chão o local de cada cômodo. Foi como se desenhasse uma planta com um programa de computador.

O CAFÉ DOS POBRES

O café produzido pelas famílias mais pobres de Riacho do Meio é do tipo “rio”. Para obter um quilo é preciso produzir quatro porque a colheita e a secagem são feitas de forma inadequada. A inexistência de estufas e o contato com a chuva alteram a qualidade.

A variedade plantada é a arábica, sendo a catuaí vermelha ou amarela a preferida dos agricultores da região devido ao fato de nascer em pés pequenos e ser mais fácil de colher. A produção começa cerca de um ano, ano e meio após o início da plantação. A colheita anual dura entre quatro e cinco meses, a partir de maio.

Dona Beatriz, a que zela para os filhos não serem picados por cobras e insetos peçonhentos, diz que é durante a safra que surge algum trabalho:

“Fora isso não tem nada para os homens fazerem, quanto mais para as mulheres. Trabalhei na ”panha” do café no ano passado. Fiquei um mês e pouco porque começou a chover e não posso pegar frieza – justifica.

Beatriz vivia e cuidava dos filhos e netos com o dinheiro do Bolsa Família, mas o benefício foi cortado quando passou a receber pensão após a morte do marido, lavrador aposentado. A dificuldade para viver aumentou depois que ela pegou um empréstimo para cuidar de “um incômodo que estava sentindo”.

A dívida com o banco hoje está em R$ 4 mil. Com o desconto, ela recebe R$ 500 mensais. Esse dinheiro é insuficiente para sustentar tanta gente dentro de casa. Mal dá para comprar feijão, arroz e macarrão. Carne nem pensar.

“As pessoas tinham deixado de passar fome nos últimos anos. Mas parece que está tudo voltando. Por que fazer o povo voltar a passar por esta privação? ” – questiona Beto.

Outro baque para a família de Beatriz foi o corte do “gato” de energia que ela trazia da casa de sua mãe.

“Foi assim: a conta de energia estava no nome de minha mãe. Foi juntando talão, foi juntando, foi juntando e ninguém pagava. Eles (os funcionários da concessionária) chegaram e cortaram a luz. Minha mãe foi lá e parcelou a dívida em quatro vezes. Eu fiquei com vergonha e não quero mais “gato” em minha casa” – diz.

As crianças ficaram sem televisão, única diversão que tinham à noite.

O candeeiro ilumina e, ao mesmo tempo, expõe toda a escuridão.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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