Os bordados do Cedro

Borda bordadeira, borda…                     Dá gosto ver-te bordar assim…               Levas em jeito de brincadeira                 Tua fausta trabalheira                              Bordando horas sem fim                                                                                                                                       Fátima Rodrigues    

Cedro de São João (SE), cidade com cerca de 6 mil habitantes e a oito quilômetros da divisa com Alagoas, é sinônimo de bordado em ponto de cruz. Mulheres de diferentes gerações sentadas na calçada com bastidores, linhas e agulhas às mãos e extensos varais, onde as peças que produzem secam após serem engomadas e lavadas, se confundem à paisagem desde que o município foi instalado em 1928.

A associação do Cedro com o ofício das bordadeiras é tão grande que há estranhamento quando alguém que nasceu lá diz que não sabe dar ponto em cruz ou fazer crochê, essencial no acabamento dos panos.

Do município saem milhares de panos de prato, passadeiras (caminhos de mesa), toalhas, colchas, conjuntos de cozinha e panos para cobrir todos os tipos de eletrodomésticos. O material é vendido, principalmente, para Aracaju (SE), Salvador (BA) e Porto de Galinhas (PE), mas também chega, via Correios, em São Paulo, Rio de Janeiro e outros países. Argentina e Estados Unidos lideram o ranking internacional.

Apesar do movimento ainda ser intenso, o mercado de trabalho das bordadeiras sofreu mudanças profundas. No passado, as meninas começavam a manejar os bastidores por volta dos oito, nove anos. As de hoje não têm intenção de dar continuidade à tradição iniciado por suas trisavós.

“Ninguém mais quer bordar. Querem brincar e namorar – diz Marinildes Ferreira Soares, 66 anos, que se iniciou no ofício aos 12 anos.

Esta não é a única alteração. Alegando crise econômica,  negociantes deixaram o ramo. É o caso de seu Armando, que trabalhava com artesanato e vendia peças para estados do Sudeste e Nordeste há 15 anos.

Quando grande quantidade de cheques dos clientes passou a ser devolvida por falta de fundos,  ele trocou o comércio do bordado pela carcaça de uma máquina de fazer sorvete de massa. A reforma do equipamento custou R$ 6 mil.  Instalado  próximo à praça da prefeitura, vende cerca de 80 unidades diariamente a R$ 2, cada.

“A crise acabou com os bordados” – exagera Armando.

Na prática, os efeitos econômicos atingiram o mercado de bordados com maior intensidade há três meses, mas as bordadeiras mais experientes se mantiveram, diversificando os negócios e atendendo as exigências dos clientes fixos.

Ano passado, o Programa de Artesanato Sergipano (Proarte), ligado à Secretaria de Estado da Mulher, Inclusão e Assistência Social, do Trabalho e dos Direitos Humanos fez o recadastramento de artesãs e artesãos do Cedro.

Só receberam a Carteira Nacional quem cria peças. Os que fazem apenas trabalho manual não são contemplados. Foram registradas 32 artesãs na sede do município e cinco no povoado Poço dos Bois.

Maria José da Cruz Santos, 71 anos, obteve o documento pela primeira vez. Ela aprendeu a bordar com a avó e a mãe, que criou 18 filhos desta maneira. Maria vende boa parte do que produz para clientes em São Paulo.

Como avencas na caatinga

O documentário A Mão que Borda (2013), dirigido por Caroline Mendonça, dá uma ideia do que foi a fase áurea do bordado em ponto de cruz, base da economia familiar de gerações. O filme  questiona a falta de políticas públicas para o setor e nos faz perguntar até quando esta tradição será mantida.

A cena inicial é de uma beleza ímpar. A avó ensina a arte para a neta, pacientemente. A origem deste costume tem diferentes versões . Teria sido implantado por  holandeses  que viveram pela região. Outra possibilidade é que foram os ciganos que introduziram esta prática.

No filme, há críticas à falta de políticas públicas, à desvalorização dos profissionais e aos atravessadores que mandam bordar nas peças frases como lembrança da Bahia, de Maceió ou de qualquer outro lugar, impedindo que as artesãs e a cidade sejam reconhecidas por seus méritos.

A sugestão do filme foi de Berenice Ferreira Soares e Ferreira, 43 anos, filha da artesã Marinildes. As duas faziam os bicos (bordas de crochê e arremate) nos trabalhos em ponto de cruz. E são elas que nos darão a noção de como funciona este mercado informal.

O papel dos homens

A indústria do bordado reservou aos homens o papel de negociador, transportador e atravessador. Com as demissões ocorridas nos últimos anos e a redução do nível de emprego no país, alguns assumiram a função de lavadores e engomadores, como é o caso do ex-metalúrgico Joaquim Souza, 32 anos, que cobra R$ 1 para engomar cada peça.

Berenice, no entanto, revela casos de homens que bordavam escondidos por causa do preconceito. Ela cita dois irmãos que moravam no bairro da Barroca.

“Eles ficavam no cantinho da janela. Quando a gente passava, eles escondiam tudo, mas na verdade estavam lá fazendo ponto de cruz” – lembra.

Por sua vez, Marinildes é do tempo que a mesma pessoa fazia a costura, lavava, botava na goma e viajava para vender. Até hoje, ela vai uma vez por semana para Aracaju e outra para a feira de Propriá vender seus produtos.

“Ainda tem muito bordado no Cedro, mas agora o pessoal revende mais do que produz” – explica.

Bordadeiras rurais

Os artesãs e artesãos compram os tecidos – etamine, londrina e linho fervô -, linhas e agulhas e subcontratam bordadeiras nas zonas rurais de cidades próximas. Os trabalhos são encomendados as artesãs terceirizadas são pagas de acordo com o tamanho da peça. Uma passadeira rende R$ 8.  Um pano de prato, R$ 1,50.

Semanalmente, os contratantes buscam os bordados, que são entregues sem lavar. Às vezes, estão sujos de barro porque as casas na zona rural não têm piso. É comum também manchas de xixi de criança.

Incluindo o valor do sabão, da linha e da goma, a passadeira tem preço de custo de R$ 20. Centenas delas são entregues para os comerciantes em Aracaju a R$ 22. A venda em grande quantidade é que garante o lucro. No Mercado Modelo, em Salvador, o mesmo bordado varia de R$ 45 a R$ 55.

A manha do bastidor

A loja Confiança, de Propriá, pertencente à dona Nelipa, foi a mais famosa da região. As famílias cedrenses davam preferência para a compra de tecidos, principalmente, nas cores branca, bege e salmão.

O bastidor e as agulhas também são sagrados para as bordadeiras, pois são adaptados ao jeito de cada uma trabalha. Há 50 anos, os desenhos eram mais rebuscados e as peças eram maiores, incluindo colchas e toalhas de mesa. As flores, bem detalhados, tinham dificuldades adicionais. Só as melhores as melhores artesãs conseguiam prepará-las.

As peças mais vendidas, atualmente, são as menores, panos de pratos e passadeiras. A mais lenta das bordadeiras consegue terminar o adorno de mesa em dois dias.

“Já o bico a gente faz de repente” – diz Marinildes, cuja filha faz o acabamento sem sequer olhar para o pano.

Lavar e engomar podem ser feitos pela mesma pessoa, mas passar a ferro é uma outra especialidade.

Depois de tudo pronto, hora da entrega. Normalmente, as artesãs mais experientes têm entre seus clientes 20 ou mais lojas.  As remessas variam de 200 a 1.000 peças e a prestação de contas é feita a cada sete dias.

Há três meses, o movimento caiu pela metade. Berenice diz que o atraso e o parcelamento de salários de servidores foram os principais motivos. Embora a crise tenha se acentuado em 2016, foi em  de março deste ano que os artesãos começaram a sentir seus efeitos para valer.

A alternativa para se manter foi diversificar ainda mais o negócio, adquirindo roupas com bordados richileu, renascença, guipir de comerciantes cearenses, que usam máquinas industriais para bordar. Para reconhecer a diferença do trabalho manual é preciso virar vestidos e camisas pelo avesso. O bordado artesanal deixa marcas da linha.

Vestidos com bordados feitos em máquina industrial para festas e casamentos são vendidos a R$ 2 mil no Cedro e em Propriá . Na capital sergipana, passam a custar até R$ 8 mil. Estilistas famosos compram as rendas no mesmo fornecedor, aplicam em suas criações, e cobram por uma vestimenta para celebridades.entre R$ 15 mil e R$ 20 mil.

Engatinhando na internet

A maioria dos bordados vendidos no Mercado Modelo, em Salvador, na Feira de Caruaru e em Porto de Galinhas (PE) sai do Cedro. Para acabar com o anonimato da cidade e dos artesãos, eles estão começando a utilizar a internet, ainda que de forma precária.

Marinildes e Berenice fazem propaganda de suas peças em uma página do Facebook e no Instagram. O espaço é dividido com lojas de outros estados e produtos tão diferentes como tênis e roupa indiana. No entanto, mãe e filha planejam ter um site próprio.

Já as artesãs mais velhas preferem manter o modo tradicional de venda. Dona Helena, “oitenta e tantos anos”, é uma delas. Nascida em Propriá,  aprendeu a fazer ponto de cruz aos 7 anos. Sua renda é proveniente da banca que mantém no mercado 24 horas de Aracaju. Ela é uma das poucas que trabalha até nos feriados mais respeitados, como a Semana Santa. Por produzir suas peças, seus preços são idênticos aos cobrados a 98 quilômetros de distância.

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A sua vida, o meu caminho, nosso amor Você a linha e eu o linho, nosso amor      Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa                                                               Reproduzidos no bordado, a casa, a estrada, a correnteza                                   O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza                                                                                                                        Gilberto Gil

                                                                                      

 

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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10 respostas

  1. Amo de paixão, esses bordados do cedro, tenho peças que comprei de revendedoras e gostaria de revender também como faço pra comprar ? Onde fica um ponto de venda?

  2. Estive em Aracaju este ano 2020 e conheci os bordados e as rendas, fiquei apaixonada
    Gostaria de entrar em contato pelo Facebook e conhecer mais peças

  3. Boa noite sou a marlete moro no Maranhão sou de Canhoba como faço pra adquirir uns caminho de mesa de 4 metros e 40 centímetros

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