Vida quilombola

Aliete Alves da Gama é uma jovem da comunidade de Patos, uma das 23 que formam o quilombo de Laje dos Negros, em Campo Formoso (BA). A vida de Aliete é marcada por lutas e tragédias, mas ela reuniu forças para seguir em frente. Leia o depoimento abaixo:

“Lembro-me como se fosse ontem daquela menina negra dos cabelos caracolados, sempre sorridente, com olhar de coruja que conseguia ver o que os outros não viam.

Menina esperta, apegada a família.

Menina que era o xodó do seu padrasto e orgulho de sua mãe.

Menina que desde pequena ajudava a mãe nos trabalhos de casa e da roça.

Casa do quilombo. Foto: Joabes R. Casaldáliga

Acordava todos os dias às 5 horas da manhã para limpar a casa antes de ir para escola ás 7h. Quando voltava da escola ia para roça com a mãe plantar, capinar, cuidar das criações. Às vezes, íamos fazer carvão para minimizar o gasto com o botijão de gás.

Menina que foi crescendo vendo o sofrimento de sua família, a perda de vários entes queridos, por conta das injustiças sociais.

Menina que perdeu o pai aos dois meses de nascida, pai que foi morto de forma cruel, assassinado na frente da mãe com equipamentos de roça – faca, facão e foice. Pai que mesmo diante da morte conseguiu se despedir da esposa e sua última fala foi “cuide das meninas”.

Menina que mais tarde perdeu o tio, irmão de sua mãe, morto à traição, com arma de fogo. O motivo da morte? Briga por terra.

O sofrimento era constante. Anos mais tarde, outra notícia triste para família, a perda de outro tio, outro irmão de sua mãe, morto brutalmente. Quando a família tentava se estruturar, acontecia outra desgraça.

A menina foi crescendo em meio a muita dor, muita revolta. Sua mãe ficou depressiva, o outro tio também. O coração de seu avô não suportou tanta dor.

Menina que perguntava: Como pode um ser humano tirar a vida de outro ser humano? Por que o ser humano é tão cruel? Por que tudo só acontece com minha família?

Menina que gostava de ouvir sempre os conselhos dos mais velhos, conselhos que às vezes confundiam muito sua mente.

Menina que se preocupava com o bem-estar de sua família, que passou por várias dificuldades, mas nunca desistiu da vida.

Menina que sonhava em trabalhar e ajudar sua família, sempre dedicada aos estudos.

Chega o tempo que essa menina teve que escolher entre os conselhos de seu padrasto que dizia:

– Minha filha, estude. Deixe essa casa de lado e vá fazer seus trabalhos da escola. Para termos uma vida melhor, é preciso se formar, não quero que você tenha o futuro igual ao nosso.

E o conselho da mãe:

– Vai na onda de seu padrasto que você é que vai perder, o certo que você tem é sua casa, sua roça e suas cabras, você deve é me ajudar a cuidar das criações. Estudo não enche barriga de ninguém.

Para não magoar nem um nem outro, a menina decidiu estudar e sempre que possível ajudava nos trabalhos de casa. Era bonito ver o orgulho de seus familiares.

Menina-mulher. Foto: Joabes R. Casaldáliga

Com o tempo a menina foi se tornando mulher e percebendo que a vida exigia mais, que aquilo tudo era pouco, que queria conhecer o mundo, queria voar.

Não foi uma escolha fácil. Não foi!

A menina-mulher negra foi para o mundo, foi trabalhar, tentar cursar uma faculdade.

Mas ela não sabia que o mundo não era fácil, que as pessoas eram racistas, egoístas, maldosas, interesseiras.

A menina-mulher sofria preconceito por ser negra, da roça, por ter uns cabelos duros, como eles diziam.

Abaixou a cabeça várias vezes, chorava como uma criança. Se sentia sozinha naquele lugar estranho, com pessoas estranhas.

Sabe o que aconteceu?

A menina-mulher resolveu alisar o cabelo. Seguir os padrões daquela sociedade preconceituosa para tentar ser aceita.

Apesar dos cabelos estarem lisos, ela ainda continuava negra.

A menina decidiu voltar para casa, mas percebeu a diferença no olhar de seus pais, o orgulho que demonstravam sentir tinha se transformado em desprezo, desgosto.

Daí ela percebeu que a única coisa que podia fazer era estudar, tentar ser uma pessoa melhor, seguir as ordens de seus pais, satisfazer apenas a escolhas e vontade deles.

Nesse período se sentia perdida, sem direção, se sentia carente; carente de atenção e de amor.

Como Deus nunca abandona seus filhos, e alegria vem no amanhecer, novas oportunidades surgiram. Ela começou a cursar uma faculdade paga por seu padrasto, a participar da vida da comunidade, fundou uma associação comunitária com apoio do sindicato.

A menina-mulher percebeu que ao participar das reuniões e discussões na comunidade se sentia renovada, outra pessoa. Sentia uma felicidade inexplicável. E foi se descobrindo a cada segundo, a cada dia. Participava e contribuía com o sindicato dos trabalhadores rurais.

A menina foi desaparecendo.

Surgiu uma nova mulher.

Mulher que começou a assumir a direção de sua vida, a fazer suas escolhas com humildade e sabedoria.

Mulher que sabe o que quer, decidida. Que chegou até os pais e falou o que realmente queria, porém eles não a apoiaram. Eles ainda queriam controlar sua vida.

Sem perder o respeito que sente pelos pais, pediu bênção. E seguiu engajada nos movimentos sociais, lutando contra todas formas de injustiças, defendendo as causas que ela considera importante.

Mulher com uma mentalidade diferente, que cortou seus cabelos para realmente assumir sua identidade.

Mulher que segue empoderada e segura.

Mulher que acredita que a casa e o homem não a define.

Mulher que busca melhorias não somente para si, mas para um coletivo.

Mulher que tem um namorado, companheiro de luta, que lhe apóia e lhe ajuda a ser uma pessoa melhor a cada dia.

Aliete e Joabes

Mulher negra, da roça, com seu black, que hoje cursa uma universidade federal, fazendo o curso de tecnóloga em agroecologia pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera).

Mulher que a cada dia tem orgulho de suas raízes, de sua ancestralidade, de sua identidade”.

Nascida em Campo Formoso (BA), é pedagoga e técnica em agroecologia
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