Sítio Tomás, em Canudos

A medida que o carro do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA) avança em direção à comunidade Sítio Tomás em Canudos, para a visita semanal do técnico em agropecuária Vanderlei Leite da Silva, a paisagem vai ficando verde e as poças de água denunciam que choveu cerca de 30 mm por metro quadrado no dia anterior (7 de fevereiro de 2017). Dois dias antes também caiu água. Há uma crença que chuva no semiárido “não falha quando pega o trilho”.

Logo, Vanderlei chegará a um oásis: as terras do agricultor e criador de animais Afonso Almeida da Silva, 63 anos. Afonso é representante da Associação Agropastoril dos Pequenos Criadores do Povoado Sítio Tomás, integrante da Cooperativa de Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (Coopercuc) e considerado o mais dedicado produtor rural da região, frequentador assíduo de cursos, palestras e seminários.

Quando fez a escola de formação do IRPAA optou pelo curso de forração – cobertura vegetal sobre o solo. Nas aulas, ficava quieto, prestando atenção. Quando perguntavam se ele era mudo, respondia: “Depois dou o resultado para vocês”.

A promessa foi cumprida.

DA FAXINA AO CAMPO

Afonso, antes de se fixar no campo, tentou a vida em São Paulo. Foi trabalhar como faxineiro nas Lojas Americanas. Chegou a conferente, mas a cidade grande não era um plano definitivo.

Retornou para suas 50 tarefas de terra. Cerca de 20% delas estão cultivadas, principalmente com forrageiras. O restante, formado por mata, é usado pelos animais. No fundo de pasto há ainda uma serra com cerca de 573 tarefas, onde ovinos e caprinos se esbaldam.

Na propriedade são desenvolvidas experiências, incluindo a plantação e venda de mudas de mandacaru sem espinhos (encontrado no Rio Grande do Norte e desenvolvido pela Embrapa, em Petrolina – PE), andu, sorgo, sisal, melancia de cavalo, feijão de porco, palma, leucena, maracujá do mato e muitas outras espécies para alimentação dos animais.

Banco de sementes. Foto: Paulo Oliveira

A silagem, o armazenamento de água da chuva em diferentes cisternas para consumo e produção – há dez anos ele não contrata caminhão-pipa -, a criação de caprinos em fundo de pasto com cuidados para evitar doenças, a minifábrica da Coopercuc para beneficiamento de frutas e, principalmente, o banco de sementes nativas são os diferenciais implantados por seu Afonso.

A produtividade das terras de Sítio Tomás atrai visitantes de outras cidades. Nas primeiras semanas de fevereiro, a propriedade modelo recebeu a visita de 50 agricultores ligados à Associação Regional de Convivência Apropriada ao Semiárido (Arcas) de Cícero Dantas e 50 indígenas do município de Abaré. Todos em busca de novas técnicas de convivência com o semiárido.

CARACTERÍSTICAS DO SOLO

As terras em Sítio Tomás têm solo areno-argiloso, rico em matéria orgânica. O uso de adubação verde  e cobertura com palhadas aumenta a fertilidade do terreno.

Cobertura com palhada. Foto: Paulo Oliveira

Em torno da casa de Afonso, existem plantações de sisal, palma, mandacaru e outras forrageiras. Cinco mil pés de sisal estão plantados em duas tarefas. O agricultor explica que quando nasce a flecha (madeira resistente usada para construção de currais, chiqueiros e até instrumentos musicais), a planta morre. A palha retirada é utilizada para servir de ração animal.

Uma pequena parte da propriedade é destinada ao capim buffel. No entanto, está gramínea e apontada como uma das causas do desmatamento da caatinga pelo o agricultor José Luiz, 32 anos, desde os 10 ajudando o pai:

“Se não fosse o capim, teria mais mata no Nordeste. Os fazendeiros desmataram muito e investiram nela para alimentar o gado” – conta.

Os Silva seguem os mandamentos de conservação do solo. Não tiram, nem queimam nada. As palhadas que cobrem o solo podem dar a impressão que o terreno está descuidado. No entanto, a cobertura mantém a umidade, serve como adubo, e evita a erosão. Com uma pequena molhação de chuva, preserva o solo úmido por um mês.

ESTOQUE DE RAÇÃO

A prioridade é criar os animais soltos. Quanto mais caminham, melhor. Enquanto buscam alimentos seus donos estocam a ração que precisarão nos piores momentos de estiagem.

José Luiz diz que se não for assim durante a seca muitos animais podem morrer. Descarta ainda mantê-los com milho. Chega a comparar o grão com a cachaça, pois, de acordo com ele, vicia os caprinos e ovinos.

No período chuvoso, a família Silva chega a estocar cinco mil quilos de ração.

As ovelhas de seu Afonso são mestiças. Mistura de “pé duro” com Santa Inês. Ele negocia quatro cabeças por mês. Cada uma a R$ 150. Também vende saco de esterco por R$ 3 para compradores da região e de Sergipe.

Medidas simples impedem que as cabras e ovelhas contraiam doenças nos cascos. Na saída das áreas de confinamento há uma grande porção de cal para impedir a contaminação por bactérias.

FÁBRICA E CANTEIROS

A propriedade supervisionada pelo técnico  Vanderlei Leite, do IRPAA,  é cortada por uma estrada. Diante da casa dos Silva existe uma minifábrica da Coopercuc com capacidade de produzir 10 toneladas por ano de geleias, doces, compotas e polpas de frutas nativas (umbu e maracujá da caatinga dentre elas). A unidade, durante a safra,  funciona por 120 dias, em turnos de oito horas. Dez pessoas se revezam na produção.

Próximo da fábrica, existe uma cisterna calçadão, com capacidade para 52 mil litros de água. Ela serve para a plantações. Um dos canteiros existentes no local é o de mandacaru sem espinhos, cujas mudas são vendidas por R$ 2. Um “braço” de cactos dá para produzir três unidades de 20 centímetros.

Melancia de cavalo. Foto: Paulo Oliveira

O maracujá da caatinga é plantado perto do mandacaru. Quanto mais é cortado, mais forte ficam seus garranchos. Outra fruta produzia é a melancia de cavalo, também conhecida como melancia forrageira. Afonso produz entre duas e três mil unidades. Ela tem massa dura e pode ser guardada por um ano após a perda das folhas.

Na área dos canteiros se pratica o mesmo mandamento de não queimar ou retirar nada do solo. Um tronco caído de imburana fica no chão para atrair o besouro que enxerta o maracujá.

Além da cisterna calçadão, a área de experimentos e criação de mudas tem um poço de água salobra, de onde brotou água a 26 metros de profundidade. O líquido será examinado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para avaliar se é possível sua utilização nas plantas. A propriedade toda tem, pelo menos, mais cinco cisternas.

Outros plantas e árvores cultivadas próximas aos canteiros:

Lambe-seda – Nativa da caatinga e só ingerida pelos bichos em épocas de seca. Esta planta tem uma espécie de fios de lã entre os brotos que são usadas pelas sertanejas para fazer travesseiros.

Leucena – Planta nativa da América Central. Leguminosa palatável para rebanhos e tolerante à seca. Tem rápida proliferação e, sem controle, pode tornar-se uma espécie invasora competindo com a vegetação natural e se tornando sério problema

Moringa – Árvore originária da Índia, cujos caroços servem para purificar a água. Suas folhas e flores, ricas em vitaminas, servem de alimento para pessoas e animais em diversos países asiáticos e africanos.

Feijão de porco – Leguminosa que tem capacidade de absorver nitrogênio do ar e incorporar ao solo (adubação verde).

ENERGIA ELÉTRICA

Hoje, 20 pessoas dependem direta ou indiretamente das terras de Afonso. Às vezes, o aumento de produção faz com que sejam contratado  um diarista. As melhorias na propriedade começaram em 2013, quando a energia elétrica chegou ao povoado. Com isto, os Silva puderam comprar uma máquina forrageira, geladeira e agregar produtos industriais.

Como consequência da introdução de técnicas e tecnologias, a família de agricultores deixou de tirar dinheiro do bolso para comprar ração, melhorou a forma de captação de água da chuva, passou a agir de forma coletiva e agregou rendimento com a melhoria de produção de animais e com a minifábrica.

“Saímos do atraso cultural” – diz Afonso

Um dos maiores orgulhos do produtor rural é o Banco de Sementes iniciado com incentivo do IRPAA há dez anos. A ONG construiu o prédio. O proprietário cedeu o terreno e a comunidade entrou com o material de construção e a mão de obra. No início, o banco guardava pequena quantidade de sementes de sorgo, andu, milho, mas Afonso ampliou o estoque de sementes nativas e orgânicas, que podem ser emprestados para pessoas da comunidade e até de outras cidades.

Sementes em tonéis. Foto: Paulo Oliveira

Uma garrafa plástica cheia de sementes dá para plantar  área equivalente a uma tarefa. O banco é comunitário. Quem leva as sementes tem que devolver, após a safra. Seu Afonso reclama que alguns não cumprem o acordo. Na véspera, ele tinha recebido uma garrafa pet cheia de sementes de milho catetinho, espécie em extinção no semiárido, devolvido por um agricultor de Cícero Dantas.

Além das pequenas embalagens, ele estoca sementes em tonéis de até 100 quilos, um patrimônio de valor incalculável.

As terras no Sítio Tomás são pouco valorizadas. Cobra-se por uma tarefa valor entre R$ 150 e R$ 200. Como comparação, em Euclides da Cunha, a 84 km de distância, a mesma área é vendida por R$ 6 mil.

fotos do sítio
Passeio pelas terras de Afonso
Leia a sériE completa

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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Uma resposta

  1. Tenho o interesse de morar nessa terra, como consigo isso? São os meu sonhos desde criança, você pode realizar o meu sonho? Posso comprar até cinco tarefas de terra.

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