Samba de roda e cuia em Riachão

Zuza não sabia que sua história ia dar samba quando arrumou uma namorada em Riachão de Jacuípe. Casado, foi morar em um lugarejo a seis quilômetros da sede do município. Para se divertir, o agricultor se juntou a José Roçadinho e outros amigos afim de cantar e tocar instrumentos. Foi assim, “meio por acaso”, como diz o bisneto do fundador Misael Carneiro Oliveira, 79 anos, que surgiu, há cerca de 140 anos, o Samba de Pedrinhas, o mais antigo grupo de samba de roda de Riachão.

Misael, criador de gado, ex-vereador, líder do conjunto e tocador de cuia, vem de uma linhagem de sambadores, mas corre o risco de não fazer sucessor. Seguiu os passos e a cadência do bisavô Zuza, do avô Primitivo Pedro Carneiro, do pai Elias José Oliveira e dos tios Pedro, Isídrio e Argemiro. Outro componente de destaque foi Totonho, cuja filha guarda um caderno com letras de chulas e batuques da década de 1930. As músicas tratam de temas como a seca de 32 e a atuação de antigos intendentes.

A brincadeira começou a ficar mais séria no tempo de Elias. Pedrinhas já era um povoado com 20 casas de pessoas da mesma família. O patriarca e dois de seus filhos – um deles Misael, então com 10 anos – participavam e cantavam o Boi de Roça ou Batalhão, tradição que consiste em reunir trabalhadores rurais para fazer a colheita da roça de um vizinho. O serviço é feito regado à cantoria, cachaça e alimentação farta. A prática está se extinguindo.

“Funcionava como uma associação na época. O sujeito tinha uma propriedade de milho. Um vizinho juntava 30, 50, 60 homens e ficava responsável pelo povo. Sem o dono da plantação saber, às quatro horas da manhã, todos apareciam e cantavam: ‘Levanta o boi que ele está a deitar/ E traz a cachaça, mã, para rapaziada/ Boi, iá, iá’. Aí, tinha uma ‘foguetagem’ danada, bomba… O cara acordava doidinho atrás de carneiro, porco… Era bem cedo, então ele tinha tempo de providenciar as coisas. No final do dia o milho estava todo limpo” – conta Misael.

Chulas e batuques animavam ainda a bata do feijão e a descasca (ou despalha) do milho, igualmente realizados em troca de bebida e alimentação. Para soltar os grãos das cascas eram usadas varas de icó de 3 m de altura. Em parcelas (parcerias, duplas), os trabalhadores faziam cantorias e batiam nas vagens.

“Quando um ia, o outro vinha. As batidas soavam assim: ‘pra, pra, pra’” – explica o músico.

Já o milho é debulhado a golpes de porrete

“Fiz uma empreitada com meu tio Isidrio uma vez. Bati 25 sacos de milho até o meio-dia. A música que cantávamos lembro até hoje: ‘O milho tá no feijão/ O pendão tá na fulô/ Ô, Riachão, onde anda meu amor? / Onde anda meu amor? / Onde anda meu amor?”

HISTÓRIAS DE AMOR E DE RAPOSAS

Os autores das letras dos sambas se inspiravam em histórias de amor, de labuta, de raposas, coisas do cotidiano no campo.

“Você quebrou meu pires na pila do café/ Você paga meu pires pelo preço que eu quiser/ Pelo preço que eu quiser.”

O samba de roda encerra outro ritual que começa com a reza de terços ou missa realizada em uma propriedade rural. Ao fim do ato religioso, muitas vezes realizado como pagamento de uma promessa, ocorre o leilão, cujo principal personagem é o “cantador”. De sua atuação depende o valor que será arrecadado. Quanto mais engraçado e criativo o leiloeiro, maiores os lances. Em Riachão, Gago e Zezé de Tio João são famosos.

A disputa para arrematar uma lata de sardinha, uma galinha, um pacote de bolacha e outras coisas simples, cuja renda será revertida para ajudar alguém, muitas vezes serve para um rapaz revelar seus sentimentos por uma moça. O objeto que ele adquire é oferecido para ela. Muitos namoros começam assim.

O leilão, onde homens e mulheres se juntam, serve para quebrar o gelo antes de mais duas partes profanas da cerimônia. A cantiga de roda e o samba. Uma das versões para o nome samba de roda é que enquanto as mulheres faziam as cirandas no terreno, os homens tocavam dentro das casas. Eram sambas e rodas.

“Essa dança foi uma forma que a mulher do campo encontrou para se mostrar para os rapazes numa época em que elas eram criadas com muito rigor” – diz o jornalista e produtor cultural Evandro Matos.

A fogueira era acessa para espantar o frio. E a música varava a noite.

“É importante lembrar que o samba tem ordem. Ele começa a ser cantado pelo líder e seu parceiro, depois é a vez da parcela que está à direita. E vai assim até chegar de novo no líder. Aí, quando volta para mim, a chula, uma história cantada, termina e é a vez do batuque, que tem uma letra menor” – explica Misael.

ESTRANHA PONTUAÇÃO

O sindicato dos trabalhadores rurais de Riachão de Jacuípe todo ano promove uma festa para escolher o melhor samba de roda. Em 2004, o pessoal das Pedrinhas perdeu a competição por dois décimos. Nunca houve no regulamento referência a este tipo de pontuação. Então, para se vingar do que consideraram uma estratégia para favorecer aos cantadores do povoado da Chapada, os derrotados fizeram a seguinte chula:

“O samba do sindicato, no ano 2004, foi o povo quem falou/ O samba do sindicato, no ano 2004, foi o povo quem falou / Birosca chega atrasado/ Chamando pra todo lado/ Atrás de um julgador/ A mesa que ele arrumou foi (sic) três pessoas decentes/ Só não deu o samba a gente/ porque não são sambador (sic)/ Foi o povo quem falou/ Foi o povo quem falou/ Quem fala agora sou eu/ Até décimo apareceu / Na soma que ele somou.”

Há diferença na formação, nos instrumentos e na forma de cantar dos grupos de samba de roda baianos. As variações dependem das influências de cada região.

Em Riachão do Jacuípe, os instrumentos utilizados tradicionalmente são a cuia –  antes feita de cabaça; hoje, com a mesma fibra usada para fazer capacetes -, a parte metálica da enxada, cavaquinho, pandeiro e violão. Alguns componentes utilizam apenas as palmas das mãos.

No passado, o Samba de Pedrinha tinha seis parcelas. Atualmente, tem três. No passado, Totonho, recorda Misael, chegou a sambar três dias e três noites, indo de fazenda em fazenda para participar do Boi Roubado. Este tipo de boi é parecido com o de roça, só que de caráter lúdico.

Nos primeiros sambas, só os homens dançavam. A partir dos anos 1970/80, as mulheres passaram a rodopiar no meio da roda, o que passou a ser evitado pelos parceiros.

A cachaça é um componente importante durante as rodas. É servida pinga pura para molhar o bico dos cantadores.

Uma norma não pode ser desrespeitada. Quem trata a chula, é o dono do batuque. Se alguém se atrever a pular a ordem das parcelas, a determinação é “cortar o candeeiro e meter faca para dentro”. Em outras palavras, a briga é inevitável.

Misael acrescenta que há uma variação no povoado de Fontinha, na antiga Vila do Candeal, onde os sambadores, no fim da festa puxavam seus facões e tentavam cortar uns aos outros. Quando o primeiro era ferido, terminava a cantoria.

A atual formação do Samba de Pedrinhas conta com Valdemar (cavaquinho), Louro Preto (pandeiro), Raimundo (pandeiro), Edílson e Pedro (palmas), Geraldo de Teresa e Misael (cuia). Evandro Matos ressalta a importância dos sambadores, mas preocupa-se com a dificuldade que eles têm para formar seus sucessores.

AS PELEJAS DE ISÍDRIO E MANOEL E A QUIXABEIRA

A fama de Isídrio e Manoel de Isaías romperam os limites de Riachão de Jacuípe. Os dois eram os preferidos dos fãs por causa da rapidez com que improvisavam chulas e batuques.

Autor de “Quixabeira”, música gravada por Carlinhos Brown, Gal Gosta, Babado Novo, Mariene de Castro, Banda Cheiro, Harmonia do Samba e Maria Bethânia, Manoel, ficou mais famoso no Brasil, mas não ganhou nada porque, inicialmente, a composição foi gravada como sendo “domínio público”.

“Alô, meu Santo Amaro / Eu vim lhe conhecer / Eu vim lhe conhecer / Samba santamarense / Pra gente aprender / Pra gente aprender.”

No entanto, segundo Evandro Matos, graças a intermediação do jornalista Josias Pires, da TVE, e do alemão Paulo Bertrand, apaixonado pela música brasileira e com contato nas gravadoras, Manuel de Isaías recebeu duas indenizações após provar que era o autor porque havia morado na fazenda Quixabeira e no distrito de Barreiros, citados na música.

“A primeira quantia foi um cala-boca. A segunda deu para Manoelzinho, que liderava o grupo de Samba de Roda do Mocó, comprar uma casa em Riachão” – diz Evandro.

Apesar disso, nas disputas paroquiais, consta que Isídrio sempre botava o rival para correr:

“Um dizia um batuque, o outro rebatia. Tudo improvisado. Mas Isidrio era o ‘satanás’. Ele contava a vida das pessoas, cantando batuque de quadra, martelo, mourão voltado e mourão caído”, exalta Misael.

Ouça “Samba de Pedrinhas” e “Chula da Inflação” e Veja o vídeo “O Toque da Cuia”

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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2 respostas

  1. Ola sou de Riachao do jacuipe e peguei uma boa parte disso e esse material e muito importante gostei muito deçe ate poque estou querendo trazee essa tradição hj morando em Sao paulo eu andeia muito com louro preto que tocava pandeiro no grupo de samba de roda das pedrinhas se ele puder da um retorno ou um número pra contato

    1. Entre em contato com Evandro Mattos, na rádio Jacuípe. Ele conhece todos os integrantes do Samba de Pedrinhas. O telefone da rádio é (075) 3264-2189

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