Salve o Paraguaçu!

Eu tenho recalque do Rio São Francisco. É uma certeza que fere o politicamente correto e deve desagradar muita gente, mas é verdadeira. Há anos venho lutando contra esse sentimento, mas não tenho tido sucesso. Aliás, não sei se a palavra exata é recalque ou inveja da forma como esse rio tem força no imaginário dos baianos enquanto o Paraguaçu, um gigante que está intimamente ligado à história da Bahia vive esquecido.

Quando eu cursava a terceira ou quarta série do antigo primário, nas aulas de geografia, erámos levados a aprender que o São Francisco nasce na Serra da Canastra em Minas Gerais. E nada sobre o Rio Paraguaçu, que corre a menos de 100 metros de onde está a casa onde cresci em Iaçu.

Já no colegial fiz um trabalho sobre o Paraguaçu e como sofri para encontrar informações. Já o São Francisco é uma celebridade com penetração midiática impressionante na Bahia. Agora, virou até tema de novela. “Rio da Integração Nacional”, “Velho Chico” e outras palavras chaves são praticamente onipresentes na memória afetiva de intelectuais e jornalistas.

Aqui, o São Francisco banha, sobretudo, a região de Juazeiro e o oeste. Mas foi Cachoeira, banhada pelo Paraguaçu, e São Francisco do Conde, situada na baía de Todos-os-Santos onde ele tem presença forte, que serviram de cenário para a novela “Velho Chico”. “Velho Chico”. Vá entender essas licenças poéticas.

cartão de visitas

O Paraguaçu ocupa 11% da área total do Estado da Bahia, que é de 567.295 km². Não sou boa em matemática, mas acho que é muito. Tem outros números: ele abastece 80 municípios e percorre, aproximadamente, 600 km da nascente em Barra da Estiva (a 579 quilômetros de Salvador), na Alta Chapada Diamantina e já próxima de Vitória da Conquista, no sudoeste, até chegar a sua foz, em Barra do Paraguaçu, no município de Salinas da Margarida (a 270 quilômetros de Salvador), na Baía de Todos-os-Santos. Parte considerável desse trecho, sobretudo o médio Paraguaçu, é formada pelos sertões.

Em 2004, o complexo da Barragem de Pedra do Cavalo já fornecia 31,7% da água consumida em Salvador. Mas nada disso é suficiente para se falar mais do Paraguaçu. Nós, baianos, não damos importância a esse rio que ainda carrega, com todos os problemas ocasionados da má educação ambiental, a diversidade de três biomas: cerrado, caatinga e mata atlântica sem mencionar as belezas naturais que enlouquecem turistas que sobem a Chapada onde ele é onipresente e recebe a maioria dos seus tributários, como o Santo Antônio.

Sem o Paraguaçu, ouso afirmar, a Bahia não seria tão diversa. Foi por ele que avançaram os sertanistas no lucrativo negócio das bandeiras. Homens, principalmente, paulistas se aventuravam em busca de ouro e metais preciosos. Como eles não são constantes em todos os trechos fixavam as fazendas “de criar gado” para fornecer carne e couro para o litoral.

Foi no entorno desse rio que se deu parte significativa da curiosa história de Gabriel Soares de Sousa, um português que, seduzido por uma carta de seu irmão, João Coelho de Souza, enveredou pelos sertões baianos esperando encontrar ouro. Com o apoio do rei da Espanha, Felipe II, Gabriel começou sua aventura que nem um naufrágio interrompeu.

Percorreu as margens do rio a partir do recôncavo erguendo por onde passava diversas casas-fortes até que foi vencido pela malária, acredita-se. Mas ainda teve tempo de escrever a obra “Tratado Descritivo do Brasil”, que, embora publicada em 1825, já circulava por Lisboa desde 1599.

Foram das águas do Paraguaçu que surgiu a opulência do diamante, sobretudo em Lençóis e que embalando o sonho de riqueza de muitos atormentou o rio até meados da década de 1990 quando a Polícia Federal fechou as últimas dragas que envenenavam as suas águas com mercúrio.

É esse rio que também pode contar a história dos povos que desapareceram devido às guerras empreendidas pelos aventureiros. São grupos como os aparentados com a família pataxó hã-hã-hae hoje concentrada no sul da Bahia, e que tem sido objeto de estudo da doutora em história social e professora da Ufba, Maria Hilda Baqueiro Paraíso. Deles, pouco se fala na região da Chapada, mas sua herança religiosa, por exemplo, persiste no jarê e na sabedoria dos chamados curandeiros e curandeiras.

Das histórias de resistência estão lá os quilombos de Rio das Contas e de outras localidades para dar testemunho. É gente que sabe contar como o rio socorreu quem precisa da agricultura de feijão, mandioca e milho para sobreviver.

MAGIA E LIBERDADE

O Paraguaçu nos deu o conhecimento sobre seres fantásticos como a Mãe D´Água, que se confunde com a religiosidade indígena e também a africana de Oxum, Iemanjá e também Nanã, lembrada na Vovô do Mangue da região de Maragogipe. Quem não temeu ser vítima das peças pregadas pelo Nego D´Água, um ser que não gosta que incomodem com muito barulho a vida do rio?

No seu entorno fortaleceu-se a história da Caipora, que exige um pedaço de fumo e respeito às matas para não punir com o esquecimento de como sair quem se aventura nas intricadas trilhas que se erguem nas matas.

Foi pelas águas do Paraguaçu que a Bahia deu início ao seu processo de emancipação política. Ainda hoje a saga da independência é festejada em cidades que tem uma profunda ligação com ele como Cachoeira e Maragojipe.

E o Paraguaçu continua desconhecido para a maioria dos baianos. Quando fiz um especial sobre ele, em 2004, como repórter do jornal A Tarde, descobri que a sua nascente não possui o status de Área de Proteção Ambiental (APA).

Quando saí de Salvador, imaginava que teria uma grande placa anunciando a sua nascente. Ilusão. Para encontrá-la, eu e o fotógrafo Luciano Andrade contamos com a ajuda de Seo Isael Pina, um pequeno produtor de café que é uma figura como essas que o sertão sempre produz.

Para chegar lá percorremos 16 quilômetros de uma trilha na mata fechada. A nascente apontada por seu Isael é menor e está a alguns metros da que foi tornada oficial e marcada por uma bananeira por associações ambientais.

Após 12 anos do especial de 24 páginas, em formato tabloide que produzi, não voltei a ver grandes histórias sobre o Paraguaçu ganhar a mídia baiana. Em compensação o São Francisco continua uma espécie de preocupação constante.

Continuo observando o Paraguaçu no trecho com que ele presenteou Iaçu. Embora recheado de problemas como lixo em suas margens, falta de programas educativos, sobretudo para preservação das nascentes dos tributários, ele continua imponente. Mantém suas épocas de cheias, cercadas do mistério de começar e retroceder sem que ninguém espere, pois não há estudos de sua vazão tão sedimentados e em circulação ampla. É pena que os baianos ainda não o enxerguem como ele merece.

(*) Cleidiana Ramos é jornalista, mestre em estudos étnicos e africanos e doutoranda em antropologia (FFCH/Ufba). É autora do livro-reportagem “Os caminhos da Água Grande”

Cleidiana Ramos Contributor

Cleidiana Ramos é jornalista, mestra em estudos étnicos e africanos e doutora em antropologia. Professora visitante na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), campus Conceição do Coité, produz a coluna semanal Memória, no jornal A Tarde. É especialista em religiões afro-brasileiras e católica. Outro tema que domina são as festas populares baianas.

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2 respostas

  1. Bom dia! Acabei de encontrar esse blog, e amei esse texto sobre o Paraguaçu, sou estudante de jornalismo em Cachoeira e queria saber se poderia entrar em contato contigo para falar sobre o Paraguaçu.

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