Capela encostada no céu

Os cerca de 20 mil peregrinos que participarão da romaria da Sexta-feira da Paixão, em Monte Santo, começam a chegar com 24 horas de antecedência. Esta não é a principal atividade religiosa na cidade. Na passagem do dia 31 de outubro para 1º de novembro, Dia de Todos os Santos, o número de religiosos, pagadores de promessa e turistas chega a 100 mil, muitos deles atraídos por um evento profano: os shows de cantores sertanejos bancados pela prefeitura para movimentar a cidade.

 Subir até o alto da Serra de Piquaraça, onde está a capela da Santa Cruz, requer fé e, principalmente, resistência para percorrer os cerca de 3 km de distância entre a base e o cume do monte, a 490 metros de altura. O percurso leva, aproximadamente, uma hora para quem está acostumado, mas pode chegar a seis horas para os romeiros – hoje, poucos – que sobem o morro de joelhos, protegidos com espuma e solado de sandálias havaianas. Também é cada vez menor a presença de pagadores de promessa carregando pedras pesadas na cabeça morro acima.

A subida é dividida em três partes. A primeira é a mais extenuante. Tem uma inclinação de 40 graus e escadaria de pedra, com degraus irregulares e escorregadios, variando entre 8 cm e 38 cm de largura. Em seus primeiros metros, está a capela do Senhor dos Passos, cuja imagem, assim como a de Nossa Senhora das Dores, mais acima, foi destruída por vândalos no passado. As imagens só sobem para os oratórios no período de procissões, entre o fim do Carnaval e a Semana Santa.

Os cortejos religiosos, realizados pela Irmandade Santíssimo Sacramento da Santa Cruz, saem da igreja do Sagrado Coração de Jesus, no pé do monte, às 5 horas. São poucos os participantes. À frente de toda a procissão, o presidente da irmandade carrega uma cruz de madeira. Em cada uma das 22 capelas que representam os passos de Nossa Senhora das Dores e de Jesus Cristo – além das três maiores, dedicadas ao Senhor dos Passos, à Nossa Senhoras das Dores e à Santa Cruz –, o grupo para e reza um pai-nosso e dez ave-marias. Uma boa oportunidade para pegar um pouco de fôlego.

Mesmo com as paradas, a primeira fase é a pior para quem nunca subiu. Sem preparo, começa-se a suar muito, o corpo entra em processo de acidose devido ao esforço muito acima do condicionamento. Os batimentos cardíacos atingem a capacidade máxima. Os primeiros sinais de que é preciso parar são ânsias de vômito. A continuidade pode levar a um colapso.

NOSSA SENHORA DAS DORES

A segunda etapa da escalada em direção à igreja da Santa Cruz começa na capela de Nossa Senhora das Dores, que tem portas laterais para que os fiéis passem por dentro do templo. No entanto, há uma crença de que o ideal é dar três voltas em torno – mesmo ritual repetido na capela da Santa Cruz – antes de entrar no espaço sagrado.

A imagem subiu na véspera, no dia 18 de março, pois a procissão que antecede a da Sexta-feira da Paixão é dedicada às dores de Nossa Senhora. Nas capelas, principalmente nas três maiores, os romeiros depositam imagens de santos quebradas e acendem velas. Em seu pequeno adro, há quem solte rojões, assustando os desavisados.

O trecho que vem a seguir é maior e menos íngreme. Pedras e areia misturam-se no caminho. A vista da cidade do alto e das serras que fascinaram Euclides da Cunha faz com que muitas pessoas parem para tirar fotos e selfies.

Neste dia, só há dois vendedores de água no trajeto. Um na capela de Nossa Senhora, outro no topo. O ambulante da parte mais baixa queixa-se que, no ano passado (2015), os padres restringiram a venda de água. A garrafa pequena custa R$ 3, o mesmo preço de um litro e meio de água nos bares da cidade. O ideal é levar a de maior quantidade.

O RESPEITO ERA MAIOR

Francisco Xavier da Silva, o Chiquinho, 68 anos, sobe o Monte Santo desde criança.

“Antes dos 10 anos, meu pai já me trazia para cá”.

Chiquinho diz que muita coisa mudou com o passar dos anos. Lembra que, ainda guri, o respeito pela religião era muito grande:

“Vínhamos de jegue do povoado que morávamos até aqui e não se batia no animal, que ficava descansando amarrado numa gameleira, na parte de baixo do morro. Durante a subida, ninguém podia conversar. Hoje, o pessoal sobe escutando rádio e de short”.

Chiquinho conta, ainda, que seus avós viveram 104 e 110 anos e que eles não cansavam de repetir para as crianças a história da ida de Antônio Conselheiro ao alto do monte. Quando a procissão da irmandade passa, ele tira o chapéu.

SENSAÇÃO DE VITÓRIA

A pequena Sara passa correndo pela escarpa, os pais vêm mais abaixo. Cem metros adiante, ela desabafa:

 “Eu não aguento mais”.

A terceira etapa é pedregosa e íngreme, mas não tão cansativa quanto a primeira. É preciso subir lentamente para evitar torções e quedas. Há quem prefira ir descalço para melhorar a aderência dos pés às pedras.

A chegada no alto do monte dá uma sensação de vitória.

A capela da Santa Cruz seria construída em um morro ao lado. Mas, diz a lenda, que frei Apolônio de Toddi teve a visão de um manto sobrevoando o local e decidiu construir o santuário ali. Nas paredes e nos altares, há várias datas inscritas, o que gera confusão sobre a sua fundação. Elas registram as ampliações e restaurações do templo.

Com pelo menos 231 anos de existência, a pequena igreja possui imagens de São João e Nossa Senhora da Soledad no altar. Na Semana Santa, a representação do Senhor Morto se une às outras. Nas paredes laterais, estão as imagens de Nossa Senhora Santana e São Pedro. A veneração, porém, é da Santa Cruz. As alas laterais foram as últimas a ser construídas. Elas abrigam ex-votos. Nos fundos da igrejinha, estão a torre e os equipamentos de transmissão da rádio da cidade.

Quem chega ao topo, dá três voltas em torno da igreja enquanto faz pedidos. Aqui se repete o costume de amarrar fitas do Monte Santo, semelhantes às do Senhor do Bonfim, na capital baiana, nas grades ao redor da capela.

MILAGRES E OUTRAS HISTÓRIAS

Lourival Pinheiro da Silva sobe o Monte Santo pelo menos quatro vezes por semana nos últimos 20 anos – um dia, ele descansa, e nos outros dois, trabalha em feiras livres de outras cidades.

Do alto do monte, ele tira parte do próprio sustento, vendendo fitinhas iguais à do Bonfim (R$ 0,20, cada), fitas mais largas (R$ 2), pacotes de vela (R$ 5), copos de alumínio com inscrições (pequeno, a R$ 5, e grande, R$ 15), biscoitos que parecem pedaços de isopor amarelo (R$ 3) e pacote com pele de porco ressecada (R$ 0,50).

O ambulante cansou de testemunhar pessoas que passam mal na subida, principalmente com problemas de pressão. Quando isto acontece, ele aconselha a ter fé em Deus e entrar na igreja, “porque logo fica bom”.

Lourival  coleciona histórias de milagres. Dá detalhes de um “aleijado” que deixou as muletas na capela e andou normalmente, de um rapaz que se curou de uma doença de pele grave e muitos outros.

Os relatos fazem romeiros e turistas se juntarem ao seu redor e provocam espanto.

“Há muitos anos, uma mulher morreu depois de “arrodear” a igreja. Sabe o que foi? Ela não tinha fé. Morreu por falta de fé”, enfatiza.

Ex-vigilante, o contador de histórias de Monte Santo atribui a um milagre da Santa Cruz o fato de ter escapado de um assalto, quando descia o morro ao anoitecer, com outras duas pessoas. Uma delas, seu Joãozinho, que recolhia o pequeno cofre de donativos.

CONSELHEIRO NA PADIOLA

Nos nove dias (há várias versões sobre o tempo, mas esta é a mais provável) que Antônio Conselheiro passou em Monte Santo, ele estava com 800 seguidores. Nesse período, mandou construir as amuradas da primeira etapa da subida e reformou seis capelas.

De acordo com José de Jesus, Conselheiro foi levado para o alto do Monte de padiola pelos fiéis e viu a imagem de Nossa Senhora chorar, o que teria servido de prenúncio de que o arraial de Belo Monte, em Canudos, seria destruído.

A façanha de conselheiro

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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