A corte celestial e a via-crúcis

O fotógrafo piauiense Sérgio Carvalho, 50 anos, trabalha sem pressa: um projeto dele pode levar mais de 10 anos para ser finalizado. Outras características de suas obras são a pegada humanista, as marcantes referências autobiográficas e a genialidade para criar abordagens inéditas para temas muito explorados. É o caso da exposição “Santo Sertão”, que estreia no próximo sábado, em Fortaleza (CE). A mostra retrata a religiosidade sertaneja em torno do mito Padre Cícero a partir de dois ensaios.

Em “Sala de Santo”, Sérgio mostra, em cores, as paredes votivas dos moradores da Ladeira do Horto, que dá acesso à imagem de 27 metros de altura do religioso, em Juazeiro do Norte (CE).

“O que são essas paredes? Diz a lenda que, a pedido de Padre Cícero, as pessoas doavam seus lares para o sagrado. Com o tempo, elas passaram a pintar as salas das casas, onde ficam esses espaços de veneração, com cores muitos fortes. Nesses recintos, colocam imagens dos santos prediletos e de parentes, mortos e vivos, criando uma “corte celestial” particular. As representações de Padre Cícero também são muito constantes” – explica o fotógrafo.

O outro ensaio, “Caminho de Pedra e Areia”, reproduz o trajeto percorrido tanto pelos moradores da região do Cariri quanto os romeiros dos estados nordestinos, principalmente de Alagoas e de Pernambuco, para o pagamento de promessas. O percurso, que vai do alto do Horto à Serra do Catolé, era utilizado por Padre Cícero para chegar a um local de refúgio e meditação. Servia também como esconderijo de cangaceiros, incluindo o grupo de Lampião, o mais famoso bandoleiro da época.

“Os romeiros fazem esse caminho como se tivessem recriando a Via-crúcis no meio do sertão. Realizam rituais próprios: carregam ex-votos e levam pedras na cabeça. Elas são depositadas ao longo do percurso, entre a copa das árvores e sobre pedregulhos para sinalizar promessa cumprida ou agradecimento. O trajeto, com subidas acentuadas, é extremamente dramático. O que se vê são rochas e garranchos secos misturados com areia sob o sol escaldante do Cariri. As fotos em preto e branco servem de contraponto as cores de “Sala de Santo”” – explica o fotógrafo.

A fotografia surgiu na vida de Sérgio, cuja profissão é auditor fiscal do Ministério do Trabalho, como forma de documentar ações contra a manutenção de trabalhadores em situação análoga à escravidão. E ganhou espaço. Hoje seu nome é referência na área de direitos humanos e na arte de retratar o Nordeste. Acompanhe agora o restante da entrevista que ele concedeu ao site Meus Sertões.

UM POUCO DE “SANTO SERTÃO”
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Como surgiu a ideia de fazer “Santo Sertão”?

Comecei a fotografar, pesquisar as romarias de Juazeiro em 2007. É um projeto de longa duração. É algo que procuro fazer nos meus trabalhos para ter intimidade com o ambiente e a história. Foram mais de 10 anos fotografando essas romarias. Faço muita questão em ter envolvimento total em cada projeto.

É claro que a exposição como está hoje não foi pensada na primeira visita.  Durante as diversas idas à cidade surgiram muitas possibilidades. As romarias e essa religiosidade sertaneja em torno de padre Cícero são de uma riqueza e de um potencial imagético infinito. Quando eu cheguei lá pela primeira vez foi como uma tempestade de imagens surgissem ao mesmo tempo diante de meus olhos, na minha cabeça.

Por outro lado, sempre tive a preocupação de não fazer o que já tem sido feito por outros colegas. Mesmo tendo como referência, nessa documentação da realidade sertaneja, os livros “Benditos”, de Tiago Santana, e “Quem Somos Nós”, de Celso Oliveira, dois parceiros sempre presentes em meu trabalho, sempre procurei evitar o que a genialidade desses dois fotógrafos produziram.

Durante toda a execução do projeto, em todas as visitas, sempre fiquei hospedado na casa de Tiago Santana, em Barbalha (município a 13 quilômetros de Juazeiro do Norte). Faço um agradecimento especial ao Tiago por ele ter cedido, todo esse tempo, o conhecimento que ele tem sobre essas romarias, essa fé. Isso foi acumulado por ele ser morador da região e durante a produção de “Benditos”.

Com as idas constantes, com a aproximação necessária do tema e das pessoas, eu fui destacando dentro do meu trabalho a “Sala do Santo” e “Caminho de Pedra e Areia”, que é comparado ao caminho do Santo Sepulcro.

Você é devoto de Padre Cícero?

Tive uma formação muito religiosa. Meu pai era ministro da eucaristia no sertão do Piauí. Minha mãe, católica fervorosa, mas hoje eu não tenho nenhuma religião. Sou ateu. A minha formação, a minha convivência com o sertão, principalmente, na primeira infância. A ligação com o sertaneja, com o vaqueiro, com a lida do gado, a alegria da chuva e a dor da seca foram fundamentais para eu fazer esses ensaios, que são próximos de mim. A história das “Salas dos Santos” é como se eu tivesse visitando as casas da minha cidade, no interior do Piauí. E o drama e o percurso do “Caminho de Pedra e Areia” é o mesmo vivenciado por todo sertanejo resistente e lutador.

Qual sua visão sobre Cícero?

Padre Cícero foi uma pessoa extremamente controversa. Sempre teve uma ligação com os pobres. Ao mesmo tempo mantinha relações com os “coronéis”, com a política. Foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, elegeu-se deputado federal e vice-governador do Ceará. Também era ligado ao cangaço. Foi conselheiro do capitão Virgulino (Lampião). E por fomentar o fanatismo religioso foi impedido pela Igreja Católica de celebrar missas e realizar batizados e casamentos. Há poucos anos, foi reabilitado. Recebeu perdão póstumo.

Nos dê detalhes sobre sua forma de produzir imagens para quem gosta, faz ou pretende fazer fotografia?

Minhas produções têm características em comum: a falta de pressa, o uso da grande angular como forma de aproximação do tema fotografado. Todo o meu trabalho é muito autobiográfico. E aí fica uma dúvida para ser tirada pelas pessoas que vão ver “Santo Sertão”. Eu quero provocar uma reflexão sobre essa religiosidade tão extremada ou apenas apresentar como eu vejo esse movimento da fé do sertanejo em torno do mito padre Cícero?

O projeto também vai se transformar em livro?

O projeto, com aprovação da Lei Rouanet, vai virar livro até o final do ano. A partir do dia 8 de fevereiro, realizaremos a exposição, vencedora do 11º Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Ceará. A curadoria é de Carlos Carvalho. A produção é de Vanessa Ramos Carvalho e a expografia, de Rodrigo Costa Lima.

Uma informação a mais: no dia do lançamento da exposição, faremos o lançamento de uma publicação limitada (200 exemplares), impressa em risografia. Ela será menor do que o livro previsto, mas feita com muito carinho.

Saiba mais sobre Sérgio e seus trabalhos

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Serviço: A exposição “Santo Sertão” será aberta às 10 horas, do dia 8 de fevereiro, na Imagem Brasil Galeria, na rua Rocha Lima, 1707, bairro Aldeota, Fortaleza (CE). As visitações podem ser feitas até o dia 14 de abril, de segunda à sexta-feira, das 8h30min às 12h e das 14h às 18h.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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