O fantástico mundo de Sebastião – Final

O raizeiro Sebastião Jovino da Costa relata histórias fantásticas que jura ter vivido nos 19 anos que atuou como pai de santo. Nelas, passeia por outras dimensões, conhece seres fabulosos e até sofre uma perseguição do diabo, que tenta obrigá-lo a trabalhar com as linhas avessas da umbanda. O tormento imposto pelo tinhoso foi transformado em conto pelo premiado escritor araciense Franklin Carvalho, autor dos livros Céus e Terra (2016), O Encourado (2009) e Câmara e Cadeia (2004).

Sebastião conta que começou a trabalhar em um centro de umbanda sem ter pedido ajuda de ninguém, sem ter feito cabeça no santo. A primeira vez que foi parar em outra dimensão aconteceu por causa de uma discussão com um “curadorzinho velho”, do distrito de Poço Grande, sobre a existência ou não de uma entidade.

“Eu conhecia todas as linhas de umbanda a fundo. Hoje eu falho, pois não me envolvo mais com isso. Ele disse que existia uma cabocla chamada Iansã e eu falei que não havia cabocla com este nome nas correntes existentes. A dos caboclos começa com Sultão da Mata e termina em Cara Coberta. Ele teimou tanto que fiz um trabalho para resolver a questão” – conta.

Bastião relata que acendeu sete velas pretas, três amarelas, três azuis, três vermelhas e três brancas e convocou as “sete linhas avessas e as sete direitas”. Depois disso, diz ter acordado em um tabuleiro (relevo formado por pequenos platôs com altura entre 20 e 50 metros, limitado por escarpas), onde só havia pedras.

À frente, cerca de sete léguas (42 quilômetros) de distância, ele via uma serra onde estava gravada a tábua das leis da umbanda com letras gigantes. Duas coisas o deixaram impressionados: o fato de não haver acesso às letras, o que aumenta o mistério sobre quem teria esculpido o texto, e o fato dele conseguir ler tudo mesmo sendo analfabeto.

Em seu relato, Bastião acrescenta que as leis da linha branca estavam escritas na parte de cima. Do meio pra baixo, as da linha preta. Enquanto reparava tudo, se aproximou, segundo o relato do raizeiro, um velho moreno com um pedaço de pau usado para abrir uma casinha rústica.

O idoso entrou no casebre, buliu em umas panelas de barro e retornou. Aproximou de Sebastião e os dois travaram o seguinte diálogo:

Velho – “O que você está fazendo nesse mundo”.

Bastião – “Ô senhor, eu vim aqui porque eu sempre fui curioso” – disse o então pai de santo.

Velho – “O curioso morre espetado, nunca seja curioso. Você procura o quê?”

Bastião – “Um teimoso disse a mim que existia a cabocla Iansã. Eu desde pequeno que já estudava as coisas e via certas coisas e não via essa mulher”.

Velho – “Não, não, não, não, não. Essa cabocla nunca foi vista. Existiu uma Mariazinha da Iansã, que sumiu. Ela não está mais na linha, desapareceu. Não sei se virou em pedra ou se virou em silêncio. Mas ela não existe e não era cabocla, era Mariazinha da Iansã.”

Bastião – E a Iansã, você sabe o que é?

Velho – A Iansã é qualquer coisa que você entrar em ação. Se você está aqui. Você não está conversando mais eu? Mas se você virar assim e pegar aquela pedra, você entra em Iansã. A Mariazinha de Iansã era uma mulher muito velha. Ela trabalhou 7.777 dias (cerca de 21 anos), e desapareceu, mas ninguém sabe se ela virou em folha, ficou no espaço. Ela não está na tábua da lei.

Depois disso, Sebastião conta que voltou para o plano terrestre e falou para o curador que teimou com ele que havia a tábua da lei de umbanda e que o nome de todas entidades estavam nela. Por isso, foi atrás dela. Segundo o raizeiro, a tábua fica em uma serra, mas não tem caminho para chegar lá. É preciso se concentrar muito para chegar na Serra Azul de Umbanda.

OS TRÊS REIS

Rei de Ouro, Rei de Prata, Rei de Bronze, Sultão da Mata e Oxóssi de Aruanda. Essas eram as entidades com as quais Sebastião trabalhava. Foi depois de uma provocação feita por um colega, que o então pai de santo acabou conhecendo no fundo do mar alguns de seus mentores espirituais.

“O cara disse que o Rei de Ouros morava em uma mata em Goiás, mas eu sempre sonhava com ele na água. Um dia fui fazer um trabalho para minha comadre Maria, que estava aleijada da perna e voltou a caminhar, e contei para ela que ia fazer contato com a entidade” – relata.

Bastião diz que à noite entrou em transe e topou com uma águia, dizendo que tinha vindo buscá-lo a mando do Rei de Ouros. O bicho, no dizer do raizeiro, era igual um carcará só que cada uma das asas dele tinha dois metros de comprimento. Surpreso, o “cavalo” do rei perguntou como chegaria até ele

“A águia coçou a asa e apanhou uma peia nova feita de ouro e prata.  Depois, mandou em montar por baixo da asa. Com o bico passou uma corda em volta do pescoço e deu para eu segurar. Ela voou passou por muitas serras e chegou no mar. Até esse tempo eu nunca tinha visto o mar” – acrescenta Sebastião.

O então pai de santo perguntou onde o Rei de Ouro estava e ouviu a ave dizer para ele fechar os olhos. Curioso, não respeito a recomendação. Então, viu a cena mais magnífica de sua vida: o mar furado no meio como se fosse uma cacimba, só que vazia. Foi por aí que, segundo ele, a águia seguiu até o fundo.

Ao chegar nas profundezas, conta que teve uma decepção. Em vez de ver uma mulher linda como imaginava ser a sereia, encontrou um ser muito feio, com pele horrível, escamosa. Ela mandou o raizeiro bater em uma pedra três vezes. Uma passagem se abriu e ele viu “um velhinho miudinho, alegre.

“Era o Rei de Ouros. Ele me disse que fazia 6.787 anos que recebera a última visita e que me recebera para mostrar onde morava. Na casa dele, do mesmo tamanho da gruta de Bom Jesus da Lapa havia todas as coisas que existem no mundo feitas de ouro. Depois da visita, ele me mandou conversar com os reis de Prata e de Bronze, mas que eu não demorasse porque o mar ia se fechar logo” – conta.

Sebastião disse que o ritual foi semelhante com as outras entidades e que os três reis lhe disseram para que ele nunca deixasse de atender espiritualmente as pessoas que o procurassem, elas tendo ou não dinheiro.

“E foi isso que fiz até o dia em que entreguei o cargo” – afirma.

A PERSEGUIÇÃO

A derradeira história contada pelo ex-pai de santo foi a que lhe teria motivado a abandonar a umbanda. Também foi a que se transformou em conto. De acordo com Bastião, Satanás passou a persegui-lo para que ele trabalhasse com as entidades das linhas avessas da umbanda – cita a de escravos e exus. Depois de lhe oferecer riqueza, sem obter sucesso, o tinhoso mandou três cães buscá-lo quando ele estava em Alagoas. Dois animais eram da cor de vinagre e um era preto. Todos tinham cabeças enormes e potentes dentadas, que arrancaram o couro e as carnes do pai de santo, deixando apenas os seus órgãos.

“Eu olhava para baixo e via meu fígado, via meu coração, via meu bucho. Só que eles não caíam, ficavam pendurados. O cachorro me arrastou pela caatinga e pelo fundo de rios até chegar em um lugar em que me mandaram comer galinhas pretas e eu recusei. Satanás mandou os cães me levarem de volta e me matarem” – descreve seu maior pesadelo.

Ao chegar em um lugar que parecia bem antigo, Bastião achou que seu fim chegaria. No entanto, apareceu um velho negro, com jeito de santo, que um dos cães chamou de “Atrapalha”. No relato do raizeiro, o velhinho se aproximou e mandou o cachorro soltá-lo.

“Solta o homem, satanás. Deus quer ele” – ordenou.

As cabeças rosnaram.

Atrapalha, segundo o raizeiro, então disse:

“Solta o homem e se expluda (sic), satanás! O homem é de Deus.”

Sebastião conta que, ainda em transe, viu um cão subir como um rojão com a cabeça em pé. Quando chegou no alto, explodiu.  E a fumaça cobriu o mundo.

O raizeiro, antes de acordar em casa, ouviu as seguintes orientações do velho:

“Olhe, dê fim a tudo que for de satanás. Agora, não rasgue sua sanfona; fique com seu violão e seu triângulo pra se divertir. Eles não têm culpa disso. O pandeirinho dê de presente a uma pessoa e peça pra ele cantar três reis. Quando ele cantar três reis, você está perdoado”.

Ao despertar em casa, Sebastião juntou correntes de ouro, fitas cassetes com gravações dos “trabalhos” que fazia, 175 pacotes de pemba, roupas e dinheiro (R$ 185). Doou a maior parte e queimou o resto. Guardou apenas as imagens do Senhor do Bonfim e de São Sebastião, usadas para devoção pessoal. Em seguida, apagou da memória a maioria dos rituais, as letras dos pontos de invocação das entidades e muitas coisas relacionadas à umbanda. Os filhos de santo o deixaram.

Cumpriu também a orientação de dar o pandeiro a um amigo, que cantou os reis e disse: “Bastião, terminemos nossa sentença. Agora, posso morrer satisfeito”.

Sebastião conta que não deu um mês e o amigo morreu.

 

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Leia mais

O mundo fantástico de Sebastião – Parte I

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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4 respostas

  1. Muito bom! Essa narrativa é de extrema importância pra quem pesquisa sobre religiões de matriz africana, sem falar na relevância do conto em si, para quem gosta de ler.

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