Segregação

Até as eleições municipais de 1968, em Rodelas, brancos, negros e índios Tuxás não dançavam sob o mesmo teto. Quem tinha pele alva frequentava o Salão dos Brancos, na rua da Frente; Tuxás e negros faziam suas festas no Salão dos Morenos, na avenida Manoel Moura.

Negros e índios podiam entrar no salão dos brancos em dia de festa. Mas não eram autorizados a dançar. Eram proibidos. A punição ao atrevimento de um moleque – as raças eram pejorativamente assim chamadas, era a expulsão imediata, puxado pelo braço.

Era como entrar em um ônibus e não poder sentar mesmo tendo assentos desocupados.

O voto motivou na cidade o arrefecimento na longa história de preconceitos. Um dos candidatos sentiu que a sua campanha não tinha decolado e, como estratégia, levantou a bandeira contra esta segregação. Para agradar e conquistar votos abriu as portas dos bailes que promovia às duas raças discriminadas. Caíram na pegadinha da igualdade racial de araque.

O outro lado político sentiu o golpe e adotou a mesma estratégia: arreganhou as portas das suas festas a todos.

Naquele ano, o pleito foi vencido por João Fonseca. O candidato derrotado foi Antônio Rodrigues.

Foram muitos os bailes inter-raciais. Mas a barreira de branco dançar com negro não foi plenamente derrubada. Juntos, mas separados.

Passada a eleição, as coisas não voltariam a ser como antes. Os bailes no salão dos brancos continuaram a ser realizados, mas não com a pompa de antes.

Negro, Cordeiro de Maria José ironiza:

“Alguns pretos que incorporaram Almeida no nome, não sei como, dançavam entre os brancos”.

O Salão dos Morenos – não dos negros -, foi construído pelo primeiro prefeito de Rodelas, Manoel Moura, uma promessa de campanha, em meados dos anos 60.

O Salão dos Brancos foi construído com a ajuda da Prefeitura de Glória – à época Rodelas era vila deste município – em meados dos anos 50. Naquela rua moravam apenas brancos – alguns ricos e muitos pobres, mas brancos. Os brancos receberam ajuda financeira do prefeito Pedro Sá, que nascera nos Mocós, povoado rodelense.

Parte do dinheiro para a obra fora arrecadada pelos brancos em campanhas que percorreu várias cidades da região, da Bahia a Pernambuco. O chamado “Livro de Ouro”.

Na mesma época, Pedro Sá emprestou um salão, entre o beco de Afra e a casa de Zé Fernandes, onde os negros passaram a fazer suas festas.

Antes, estes eventos eram realizados na casa de um deles ou sob latada no terreiro – que era uma cobertura de palha de coqueiro sustentada por forquilha.

Os bailes na biblioteca Ministro Oliveira Brito começaram a romper o preconceito. Foto cedida por João Batista Cruiz
Os bailes na biblioteca Ministro Oliveira Brito começaram a romper o preconceito.

Depois da campanha eleitoral, bailes abertos a todos timidamente começaram a ser realizados.  Inicialmente no ‘campo neutro’ da Biblioteca Municipal Ministro Oliveira Brito, construída na gestão de João Fonseca.

Os salões dos brancos e dos morenos entraram em decadência e fecharam. Restou, portanto a biblioteca.

O espaço dos brancos foi doado pela Prefeitura ao Banco do Brasil, que construiu um posto avançado. O dos morenos fechou. Foi transformado em marcenaria e em boate.

O local da biblioteca onde os bailes eram realizados foi doado pela prefeitura ao Baneb, que construiu sua agência bancária.

A construção do CADE (Clube Atlético Desportivo), no final dos anos 70, definitivamente derrubou esta e outras cortinas segregacionistas na cidade. O espaço pertencia ao Colégio Nossa Senhora do Rosário.

É um passado esquecido ou desconhecido pelos rodelenses por conveniência ou por vergonha de parte da história, aparentemente superada.

As águas da Barragem de Itaparica afogaram Rodelas. Os morenos ganharam um salão na nova cidade, benefício negado – e não protestado pelos brancos.

Entretanto, o espaço histórico está depredado: sem teto e com as paredes comprometidas, vítima do descaso.

O salão parece representar pouco ou quase nada para as novas gerações dos negros.

No brasão do município tem cocar, arco e flecha – para lembrar a origem indígena, mais a frase “Miscigenação, tradição e bravura” e o serrote, montanha de pedra no meio do lago. Miscigenação é o reconhecimento, mesmo que tardio, que os rodelenses descendem de várias raças. Nas últimas décadas os casamentos inter-raciais se tornaram comuns.

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Clubes segregacionistas existiram em várias cidades sertanejas. Em Floresta (PE), os Ferraz, uma das grandes famílias da cidade, tem o Grêmio 2 de Julho, e os Novais, outra família que disputa o poder político local, é dona da Difusora.

Os negros de maior destaque frequentavam o Batuta. O Madeirinha era onde os negros mais pobres se divertiam – o seu público era discriminado por discriminados. O Grêmio e a Difusora ainda existem.

Em Belém do São Francisco, vizinha de Floresta, antes de meados dos anos 60, os ricaços e brancos locais se divertiam no Teatro Santa Cecília, depois passaram para o Oásis.

Os negros construíram o Clube dos Artífices, capitaneados pelos Pio, uma família de negros comerciantes abastados.

Quem não se assumia negro, mas branco de pele escura, se divertia no Democrata. A estes não era permitida a entrada no clube dos brancos. Discriminavam e eram discriminados.

“O presidente do Oásis ficava na entrada, impedindo a entrada de pessoas indesejadas”, lembra o agitador cultural belenita, Marlindo Pires.

“Moças mal faladas também eram impedidas de entrar”. O Democrata foi extinto, o Oásis está em franca decadência e o Clube dos Artífices está no mesmo caminho.

Em Paulo Afonso existem o CPA e o COPA. O primeiro era frequentado pelos engenheiros e funcionários graduados da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf). O segundo abria as portas para os operários.

Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer  trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.

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2 respostas

  1. Relato extremamente relevante, que resgata a história do nosso povo.
    Minha casa, situada na Av Manoel Moura, próxima ao clube dos morenos, foi lugar de muitos encontros de pessoas das diferentes origens do povo Rodelense.
    Nós, crianças não compreendíamos essas diferenças. Meus pais, depois que saímos de nossa Terrinha é que nós esclareceram sobre essa organização social.

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