Tiana

Desde que nasceu ela é chamada de Tiana, embora em sua certidão de nascimento conste Ana Salomé Pinheiro. É por isso que ninguém na comunidade rural de Capinal Salvador, em Malhada de Pedras, no centro-sul baiano, lhe conhece de outro jeito.

“Quando eu tinha 12 anos era um tempo feio”

“Na época que eu era pequena eu não me alembro, mas depois que eu cresci e passei dos 12 anos, eu não fui na escola mais não”

A pré-adolescência marcou profundamente a vida de Tiana. Foi na idade que usa como marco temporal de sua juventude que ela foi entregue pelo pai a um fazendeiro para que não passasse fome.

“Eu fui pequena para Guajeru. Esse Adolfo Porto era muito amigo o meu pai. Meu pai tinha mais três filhos. Aqueles tempos era difícil. As crianças choravam muito com fome, me alembro. Aí esse Adolfo era muito amigo do meu pai. Ele falou se eu queria perguntar (alguma coisa a ele). Eu fique assim, olhando para ele, olhando. Aí falei: “Pai eu não vou não”. Daí o pai falou: ele tem dois meninos lá, você brinca mais eles, lá não falta nada pra ocê, não sei o quê… E foi falando coisa comigo.”

“Então eu vou”.

A menina foi de carroça de Rio do Antônio para Guajeru. Pela estrada são 50 quilômetros de distâncias; pelos atalhos, quatro léguas. Adolfo trabalhava na roça e criava gado. Durante o período que foi criada pelos Porto, sempre teve o que comer.

Do tempo em que conviveu com “o povo” (família) dela, Tiana lembra que trabalhou muito na roça:

“Dá pra vê que eu não estudei. É só o nome de fazer com uma letrinha, o nome meu. Ler é alguma coisa assim, algum número. Não ia para a escola porque nem tinha também.  Quando tinha era longe. E ainda tinha mais outra: era pago. A gente pagava para poder estudar, fazer aquelas letrinhas assim. Era caro. Isso faz tempo…”

MUDANÇA PARA CAPINAL

Pouco depois de completar 18 anos, Tiana recebeu a visita de um irmão na fazenda. Ele foi buscá-la porque precisava de alguém para cuidar dos filhos. A mulher, considerada brava demais pela família, não quis mais ficar com o marido.

 “Aí meu irmão também não quis mais mulher. Eu já entendia as coisas. Já sabia fazer de tudo. Do arroz ao feijão. Ele me chamou e vim ficar aqui em Malhada de Pedras mais os meninos dele.”

Em Malhada, passou três anos como babá dos sobrinhos. Lá conheceu Aurélio em uma festa de casamento. O futuro marido era um dos animadores da festa. Ele tocava cavaquinho, que Tiana insiste em chamar de violino, violão e batia pandeiro. Também gostava de cantar. Ele e Zinho de Gustavo faziam sucesso na região. Aurélio perdeu a visão em 1982, mas não deixou de trabalhar nem de participar de festas.

Depois de casados, Aurélio e Tiana se mudaram para Capinal Salvador. E de lá não saíram. Nem para visitar os filhos em São Paulo.

 “Nunca fui quando era nova, depois de velha também não vou.” – diz ela, hoje com 77 anos e viúva há uma década.

Há meio século, Capinal não tinha energia elétrica, não tinha poços de água e sofria longos períodos de estiagem.

“Pra ter luz a gente pegava as lamparininhas, botava algodão dentro e ponhava querosene. Pegava essas luz e botava tudo em cima da mesa para alumiar. Ficou um bocado de tempo assim. Aí o finado Aurélio falou pra nós voltar para Malhada outra vez porque aqui não dava pra ficar. Também não tinha água pra criar o gado e eu falei: “Vamos caçar um jeito de voltar outra vez. Quando estava arrumando pra voltar, pra vender o gadinho e uns porcos, chegou esse Ramon” – relata.

Ela se refere a um ex-prefeito de Malhada de Pedra, no final dos anos 1990. Eleito com os votos em massa do pessoal de Capinal, segundo Tiana, ele colocou energia, abriu poço artesiano e facilitou a vida de seus eleitores. O casal decidiu ficar onde estava. O mesmo não aconteceu com a maioria dos sete filhos – duas mulheres e cinco homens. Pelo menos cinco foram trabalhar no Sudeste.

Uma das filhas, justo a que morava ao lado de Tiana, morreu de derrame cerebral. Tinha 38 anos. Um dos filhos migrantes regressou e voltou para morar com a mãe.

LOBISOMENS E REZAS

Capinal Salvador nunca teve muitas opções de lazer. No passado, bem antes da energia elétrica chegar, o maior passatempo era ouvir histórias dos mais velhos.

“O finado meu sogro falava que aqui passava um monte de lobisomem, passava não sei o quê. Tanta coisa que ele falava que passava aqui. Aparecia boi enfeitado antes de ter essa estrada. Diz ele que era boi, não se sabia o que que era. Ele, o finado Teté, dizia que via passando. Ele dizia que tinha lobisomem e uns troços estranho. Graças a Deus hoje não tem nada, não vê nada mais. Hoje, não se vê falar mais nessas coisas.”

Além dos contadores de histórias e causos, outra opção de lazer eram as festas realizadas ao som de sanfonas e violões ao final das rezas. A diferença é que hoje a comunidade comprou um ônibus e viaja pelos povoados, cidades vizinhas e outras mais longes, participando de festas de padroeiros, quermesses e cultos. São cerca de 90 viagens anuais. Mas isso será o tema da próxima reportagem sobre a comunidade.

Tiana avalia que em comparação aos primeiros anos em Capinal, pode-se falar que os moradores estão no céu. De acordo com ela, melhorou tudo – “transporte, comida, saúde”. No entanto, uma única coisa lhe incomoda.

A senhora sente saudades de quê?

“A gente sente tanta falta. O finado Aurélio era rezador, tocador de violão, das rezas. Eu tirava uns cantos, ele tocava. Isto tudo vai fazendo falta. Tem uma menina minha também que morreu. Faz falta também.”

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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10 respostas

    1. A delicadeza e sensibilidade dela chamaram nossa atenção. Ela nos foi apresentada pela professora Edna. Obrigado por fazer contato conosco.

  1. Tiana é minha tia ouvir muitas história deles sentada ali de frente do terreiro eles são exemplos sinta falta dessas história são pessoa humilde simples cheia de conhecimento sabedoria que venha mais história que Deus abençoe a todos estão de parabéns

    1. Eliana, você não sabe como seu comentário deixa a equipe de Meus Sertões muito feliz. Este é um de nossos propósitos: reaproximar as pessoas. Tiana é uma pessoa fabulosa. Meiga e sábia. Obrigado.

  2. Conheço Tiana ha 30 anos. Conheci seu esposo o qual chamava-mos de tio Aurelio. Pessoas maravilhosas. Pessoas que nos recebem com uma alegria imensa em sua casa. Senti muitas saudades deles ouvido a historia dela que eu nao conhecia. Tenho lembrancas maravilhosas que passei junto com eles toda familia. Parabens pela reportagem.

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