Luta para reconhecer quilombo

Até onde a memória alcança é muito sofrimento e algumas tréguas. Antônio do Carmo, 68 anos – 65 na carteira de identidade e nos outros documentos porque demorou a ser registrado – se emociona, chora e faz longos silêncios ao contar a história de sua família. Quatro gerações forjadas na escravidão, na vida em tocas, na fuga para escapar de perseguições, na fome, na separação de seus irmãos e na disputa de terras.

Antônio, presidente da Associação de Pequenos Produtores Rurais, Artesãos e Trabalhadores de Pedreiras de Entre Morros, não desiste. Atualmente, luta pelo reconhecimento do povoado como comunidade quilombola. Seu maior inimigo é a falta de estrutura dos órgãos públicos, que atrasam a concessão do certificado.

Entre Morros está localizada na zona rural de Itatim, aproximadamente a 10 km do centro. O acesso para lá se dá pela BR-116 Sul e por uma estrada vicinal. Censo feito pela comunidade há 10 anos mostra que 30 famílias, totalizando 70 pessoas, viviam ali.

“Hoje, a quantidade de gente pequena e grande chega a 100 pessoas” – diz o presidente da associação.

A principal atividade econômica são as pedreiras, de onde são extraídas paralelos, meios-fios e blocos. A ação constante provocou a descaracterização e o desmonte de alguns morros. Mais consciente das questões ambientais e da necessidade de preservação da arte rupestre, alguns montículos estão sendo preservados. Os principais morros que a cercam são Santo Antônio, de Pedras, Frutuoso e Pedra do Índio.

O reconhecimento como quilombola habilita a comunidade a receber benefícios de 26 projetos federais, englobados no Programa Brasil Quilombola, coordenado pela Sepppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial). A certificação é, por exemplo, o primeiro passo para a regularização fundiária a ser feita pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

Os quilombolas também podem se habilitar ao Bolsa Família, aos programas de Aquisição de Alimentos (PAA), Assistência Técnica (Ater), Água e Luz Para Todos, Economia Solidária, Tarifa Social e Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP).

BARBULINA E AVELINA

O surgimento da comunidade rural de Entre Morros ocorreu no século 17. Ela foi formada por negros escravizados que fugiam das fazendas localizadas nos atuais municípios de São Félix, Cachoeira e Castro Alves.

Os índios cariris e sabujás foram os primeiros habitantes da região. Não se sabe se os dois grupos étnicos conviveram, mas a presença dos indígenas é confirmada pelas pinturas rupestres, registradas como sítio arqueológico pelo pelo Ipac (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia). Também foram encontrados restos mortais, possivelmente de negros, que habitavam grutas.

Antônio do Carmo cresceu ouvindo histórias sobre a bisavó Barbulina. Escravizada e abusada, ela fugiu para Entre Morros. Um dia, ao ir buscar caroá em um morro, Tonho Preto, como também é conhecido, soube pela mãe que a bisavó foi recapturada “à dente de cachorro” por capitães do mato. E que a avó Avelina morou em uma loca, próxima à Toca das Caboclas, onde foram encontrados restos mortais de duas mulheres.

Ana e os cinco filhos moravam em uma casa de palha. Viviam da agricultura de subsistência e da raspa do pó de palha, usada para a fabricação de plásticos. A palha também servia para trançar esteiras e goiós (uma espécie de sacola). O pai das crianças, Badu, foi embora quando Antônio tinha três anos. As dificuldades aumentaram.

“Até cinco anos mais ou menos a gente andava tudo era nu. Lembro direto da minha mãe, o sofrimento que ela passou com a gente. O pai não me lembro não. Agora do meu batizado eu lembro.  Mãe não tinha condição de … (Tonho se emociona e silencia, segundos depois complementa)…me dar um almoço. Até xinguei nome no dia do batizado. O padre estava jogando água na minha cabeça. ‘Eu não queria vir nesse batizado da desgraça’, disse. Eu tava brigando com a fome.”

Antônio acrescenta que sempre se lembrará da dona da pensão que ficou com pena dele e lhe deu comida. Seu nome era Mariana.

As recordações fazem o líder comunitário cair em prantos:

“Mainha, no mato com a gente, tirava maracujá. Ela cozinhava e dava para a gente comer. Outras vezes a gente pegava um quilo ou dois de pó de palha e trocava por rapadura e uma latinha de manteiga e de farinha. E trazia para a gente sobreviver”.

Os problemas financeiros obrigaram Ana a entregar dois de seus filhos para outras pessoas criarem. Um menino foi dado para uma moradora vizinha, uma menina foi levada por uma família para Jequié, a 140 km de distância.

Anos mais tarde, Nôga e Luzia voltaram a morar em Entre Morros.

Antônio e outros moradores do povoado também tiveram que resistir a pessoas que tentaram tomar as terras. Uma ação judicial resultou em ganho de causa para a comunidade. Mais sossegado depois que essa pendenga foi resolvida, o presidente da associação faz planos para o futuro.

DEPOIMENTOS

Segundo levantamento da professora e agente cultural Neilde Cardoso e enviado para a Fundação Cultural Palmares a fim de dar andamento ao processo de reconhecimento como comunidade quilombola, há vários relatos de moradores que atestam a condição reivindicada.

Dunga de Antônio de Cirilo, 84 anos, é um deles. Trineto, bisneto e neto de negros e índios, ele conta que sua bisavó foi explorada sexualmente pelos coronéis e teve vários filhos deles.

Dona Isaura, 86 anos, benzedeira e mãe de santo, conta que foi perseguida por manter as tradições religiosas de seus ancestrais, como dar caruru no dia de Cosme e Damião e promover rodas de samba.

Já Maria da Silva Oliveira, 40 anos, rezadeira e conhecedora dos segredos das ervas que curam, vive nas terras que pertenceram ao coronel Pedro Ventura e foram adquiridas pela avó do seu marido. Calcula-se que a antiga Fazenda Coité tenha cerca de 300 anos.

Objetos como pilão de pedra e fogão a lenha ainda são usados pelos moradores do povoado, que preservam altares com imagens de santos e de orixás em suas residências.

RELATÓRIO

O relatório no qual os habitantes de Entre Morros se autodeclaram remanescente de quilombo e reivindica o reconhecimento foi encaminhado para Camilla Pimentel Gomes, representante regional da Fundação Cultural Palmares (FCP), em setembro deste ano.

O processo de reconhecimento é regulamentado pelo decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003. Ele é concluído com a emissão da Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos.

No site da Fundação Palmares é informado que o tempo médio para a entrega do documento é de 40 dias. No entanto, em Brasília, só há um funcionário para analisar a documentação enviada, segundo fontes da Fundação. Duzentas e trinta e seis comunidades de todo o Brasil estão aguardando esta análise e não sabem quando serão contemplados.

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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