Zezé e João

João Raimundo de Melo, 76 anos, passou a maior parte da vida negociando porcos e cavalos. Assim, conseguiu comprar 200 tarefas de terra e a casa confortável, em frente à Igreja Matriz, em Cedro de São João, no sertão sergipano.

A proximidade com o tempo católico vem de longe. Quando era jovem, às vezes, substituía o sacristão. Desse tempo lembra que tinha que badalar o sino 33 vezes para chamar os fiéis para rezar o Ofício e que as missas encomendadas custavam 11 mil réis, sendo que dois iam para o sacristão e nove, para o padre, que ainda tinha que enviar a parte do bispo.

Era um tempo em que só havia carros de boi. A outra opção era o cavalo, que uma vez atolou e jogou o mais longevo padre da cidade – Manuel Guimarães na lama. O acidente ocorreu quando João e o religioso seguiam para outra cidade para rezar a Missa do Galo, à meia-noite, no Natal.

As reminiscências de menino estão bem presentes, mas é como negociante de animais que sua vida ganha mais emoção

João, que está casado há 60 anos com Maria José, a Zezé, no início vendia e comprava porcos. Engordava e matava os bichos. Negociava a arroba (15 quilos) por 120 mil réis. Suas viagens para Itabi e Nossa Senhora de Lourdes levavam até nove horas e eram feitas durante à noite e madrugada “porque porco não suporta sol e se abafa”.

Tinha então 20 anos e não imaginava que no futuro teria problemas nas pernas e joelho.

Bem antes da artrose chegar, passou a priorizar negócios com cavalos, feitos nas feiras da região. Numa delas conheceu um funcionário de um frigorífico em Itaobim (MG) que lhe fez a seguinte proposta: João passaria a ser o comprador de cavalos e burros em Sergipe e todos os meses viriam caminhões para levar os animais para abate.

João lembra que as instruções consistiam em comprar qualquer bicho. Podiam ser cegos e aleijados, pois seriam transformados em pedaços de carne para exportação, principalmente para países asiáticos.

João Raimundo recusou a oferta, alegando falta de recursos. Mas seguindo o conselho de um primo, que conhecia o dono do frigorífico em Minas, foi convencido a se transformar em fornecedor de cavalos e burros.

Pegou uma carta de apresentação com o padre Manuel Guimarães, que hoje está sepultado próximo ao altar da igreja Matriz, e seguiu para Itaobim.

“Viajei preocupado. Era analfabeto, não tinha recursos e mal tinha viajado para Aracaju. Fiquei me sentido como um cachorro arruinado, com medo de não chegar. O caminhão que me transportava, levou 24 horas até Minas Gerais, com o motorista tomando arrebite”.

Depois de parar em um hotel para tomar um banho, João e Édson, o primo, seguiram a pé para o frigorífico, distante três quilômetros. Assim que entraram na empresa, “o cobrão (proprietário) chegou”. O primo pôs a carta de apresentação no birô e o patrão perguntou quantos animais João tinha. Ele respondeu 70. E ouviu a seguinte resposta:

“Vou mandar 10 caminhões para o senhor – eles tinham capacidade para transportar 320 animais”.

Em seguida, entregou uma quantia elevada para João, que voltou para sua terra preocupado e com o dinheiro escondido em um dos caminhões:

“Eu era só nervoso. Como vou arrumar tanto bicho? ” – se perguntava.

O comboio que lhe seguia era formado por duas carretas, seis caminhões trucados e dois caminhões “toco”

ZEZÉ ENTRA EM CENA

Ao chegar em casa, João pediu para Zezé fazer comida para os motoristas e ajudantes, além do que ela já fazia para os oito filhos – um deles morreria mais tarde em um acidente automobilístico. Foram consumidos um saco de aipim e um de inhame. Daí em diante, a mulher do intermediário de compras do frigorífico passaria longos anos alimentando a tropa de caminhoneiros. O tempo que passava trabalhando em pé, fizeram com que passasse a sofrer com varizes.

Na primeira empreitada, João encheu logo dois caminhões e os mandou de volta. Acionou fornecedores em Anadia (AL), Riachuelo, Carmópolis e Aracaju (SE). Em seis dias deu conta da encomenda.

Certa vez, os caminhões atrasaram é 30% da carga morreu para desespero de João, que temia ficar sem o trabalho. No entanto, nada mudou. Todo mês ia para Itaobim prestar contas. Resolveu um dia ver como a carne dos bichos que vendia era processada.

“Entrei no matadouro e vi que eles matavam os cavalos a golpes de marreta. O bicho caía. Passavam uma corda no pescoço dele e levavam ele para o alto, onde dois caras sangravam e o terceiro tirava o couro. Depois eram retalhados. Tinha inspeção, mas passava tudo: refugo, ossos e carne para outros animais”.

Lembra ainda que não havia uma fiscalização eficiente no país. No Cedro, por exemplo, carne de equino era vendida como de boi.

RECORDE

Pouco antes das encomendas diminuírem, seu João bateu um recorde. Conseguiu adquirir 2.330 animais em seis semanas, quase todos imprestáveis. Com o dinheiro que arrecadou comprou um terreno de 200 tarefas (610.400 metros quadrados). Parou com a venda de bichos para abate e passou a se dedicar a criação de gado. Chegou a ter 60 reses, mas hoje possui 26.

Dos filhos, um morreu em acidente. Os demais trabalham como oficiais de justiça, funcionários da companhia de saneamento de Sergipe (Deso), do Banco do Nordeste, e da secretaria municipal de Fazenda.

O oitavo morreu em um acidente automobilístico.

 

Foto do alto da página: Angelina Nunes

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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