A tradução da seca

DA LITERATURA AO CINEMA, O SERTÃO E O SERTANEJO EM VIDAS SECAS

Clarissa Damasceno Melo [1]

Resumo: Este artigo propõe, considerando tanto a prosa da Geração de 30, quanto o movimento Cinema Novo, traçar a forma com que sertão e sertanejo foram representados em Vidas Secas; primeiro por Graciliano Ramos e depois por Nelson Pereira dos Santos em adaptação para o cinema; quando a literatura sobre a seca se transforma em fotografia da fome. Para tal, faremos a conexão entre complexidades sociais vividas no sertão brasileiro e a produção artística que se propôs a denunciar, esteticamente, tais complexos e contradições. Partiremos da ideia de que, fotografando a literatura regionalista da década de 1930, Nelson Pereira dos Santos consegue denunciar a condição de subdesenvolvimento encarada no país em fins dos anos 1950 e início da icônica década seguinte, concluindo que a condição de sofrimento cíclico em decorrência dos períodos de estiagem, imposto pelo sertão e sugerido por Graciliano, se confirma a cada novo ciclo de secas e que estas, apesar de serem atualmente enfrentadas com melhorias pontuais no estilo de vida do povo sertanejo, continua a atingi-lo de forma a traduzir ainda um problema historicamente negligenciado.

Palavras-chave: Vidas Secas. Romance de 30. Cinema Novo. Subdesenvolvimento.

Introdução

A arte pode ser entendida como forma de mediação entre o indivíduo e o mundo: por ser um outro modo de revelar a realidade, pode servir para o seu entendimento e, quem sabe, até mesmo para estimular os sujeitos a transformá-la. Se, ao longo da história do agitado século XX, parte considerável dos artistas engajaram-se em lutas sociais e políticas, tal engajamento traduziu uma série de acontecimentos para o campo das artes: Guernica, de Pablo Picasso, que traduziu às artes plásticas o horror nazista; as poesias drummonianas diante de um mundo em guerras e tantos outros que foram capazes de traduzir, esteticamente, a história, seus sujeitos, suas misérias – e, muitas vezes, sua transformação.

Aqui, trataremos especificamente de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que escandalizou o problema da seca correlacionando-o ao latifúndio, à má distribuição de riquezas e ao autoritarismo policial em terras sertanejas, dentre outros problemas que assolam, historicamente, o sertão brasileiro – problemas estes traduzidos tanto pelo romance, quanto pela adaptação para o cinema, de Nelson Pereira dos Santos. Com este artigo, objetivamos investigar as formas de representação do sertão e do sertanejo em um e no outro, nesse contexto de contradições, considerando tanto a prosa de 30 quanto o movimento Cinema Novo – ambos preocupados em denunciar a situação de subdesenvolvimento e pobreza do país.

Para tal, dividimos este artigo da seguinte maneira: a primeira parte, dividida em duas seções, tratará de a) o sertão e como ele se apresentou para a intelectualidade brasileira no século XX, e b) do romance, inserindo-o na geração de 30 do modernismo, comentando o livro de Graciliano Ramos e a perspectiva cíclica com que o autor representou as misérias sertanejas, numa perspectiva de assumir que elas não permanecem as mesmas, mas que se renovam a cada novo ciclo de seca. Na segunda parte, falaremos da relação entre cinema brasileiro e subdesenvolvimento e como alguns cineastas se posicionaram contra o cosmopolitismo em busca da criação de um cinema genuinamente nacional, de qualidade e preocupado em fotografar a verdade – catastrófica, mas ainda verdadeira – de nossa gente; como instrumentalizaram a prosa de 30 como fotografia da fome no cinema de 60, mencionando a Estética da Fome, finalizando com comentários sobre a adaptação fílmica de Vidas Secas para o cinema pelas mãos de Nelson Pereira dos Santos em 1963. Para tal, recorreremos a pesquisadores e estudiosos, tais quais Belmira de Magalhães, Josué de Castro, Helena Salem, Mariarosaria Fabris, dentre outros, e os próprios cinemanovistas, Glauber Rocha e Nelson Pereira.

Quando o romance foi escrito e publicado em capítulos separados, o sertão nordestino passava por intensa seca, uma das piores de sua história; quando traduzido para o cinema, nos fins dos anos 50 e do plano desenvolvimentista do Presidente JK, uma nova seca atingia a região interiorana, rejuvenescendo o debate sobre o tema. Por ironia ou por coincidência, durante a produção deste trabalho, uma nova seca atinge a região nordestina – no entanto em seu litoral, onde ela jamais fora imaginada, levando-nos a crer que quando Graciliano propõe cíclico o fenômeno da seca, ele não se enganara: ela se renova, a si mesma e a suas vítimas.

calamidade social

No Brasil, o século XX iniciara em recuperação da crise econômica desencadeada em 1896 pela superprodução do café. A crise possibilitou investimentos internacionais, resolvendo momentaneamente a angustiosa situação financeira instaurada no país, possibilitando,

Não somente restabelecer o equilíbrio das contas externas do país, mas restabelecê-lo em nível muito alto, tomando possível um largo aparelhamento material e uma sensível ascensão dos padrões da vida nacional. Instalar-se-ão grandes e modernos portos, a rede ferroviária crescerá rapidamente, inauguram-se as primeiras usinas de produção de energia elétrica (de tão grande importância num país pobre de carvão mineral), remodelam-se com grandes obras as principais cidades (em particular o Rio de Janeiro, que muda inteiramente de aspecto). E tudo mais acompanhará este ritmo de crescimento. (PRADO JR, 2012, p.167)

No entanto, como pontua Caio Prado Júnior (p. 168), tal progresso proporcionado no país após a entrada de capital estrangeiro não representará, de fato, um passo adiante na economia nacional, mas

Se fará dentro dos quadros tradicionais da economia brasileira; não se terá modificado, mas apenas ajustado a um novo ritmo de crescimento, a estrutura fundamental do país. Continuará ele essencialmente produtor de uns poucos gêneros de grande expressão no comércio internacional; e esta produção repousará, em última instância, na mesma organização herdada do passado: a grande propriedade e exploração fundiária.

Na zona rural, portanto, o latifúndio seguia sendo verdade e, os antigos escravos, substituídos pelos escravos modernos: remunerados, porém despossuídos de meios de produção, condenados, portanto, a vender sua força de trabalho aos senhores de terra.

No sertão, períodos de estiagem castigavam e matavam sertanejos, numa situação de miséria sumariamente negligenciada pelas autoridades e vista com indiferença pelas populações urbanas. Euclides da Cunha, ao apontar o total desconhecimento em que vivia a população do litoral com relação à situação do Brasil interiorano, alimenta o pensamento intelectual nacional sobre o problema das secas e da miséria sertaneja, reforçando a concepção de um Brasil dividido entre a faixa litorânea, densamente habitada, e o sertão, território tão despovoado quanto desconhecido. A dualidade entre o Brasil urbano, reflexo da civilização europeia, e o Brasil interno, onde vige ainda uma situação de absoluto atraso, é perceptível no seguinte trecho de Os sertões:

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que pelejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo; respingando em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras frações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-lo três séculos. (CUNHA, 2002, p.137-138)

Definida por Euclides da Cunha (2002, p. 69) como “um ciclo inflexível”, as secas existem desde que a tradição oral lhes pode contar, transformando o sertanejo em um sobrevivente, “antes de tudo, um forte” (p.146). Diferente do Brasil litorâneo, o ambiente sertanejo – seco, improdutivo, paupérrimo – apresenta-se à intelectualidade brasileira como problema insolúvel: era o território da calamidade social e da geografia perversa que aprisionava parte da população brasileira à austeridade do sertão.

Essa prisão aberta, avermelhada e de solo rachado produziu e produz em redor de si mesma determinada consciência política, social e cultural, cuja relação entre homem e território, Moraes (1988, p. 32) nomeou de pensamento geográfico, ou seja, “um conjunto de discursos a respeito do espaço que substantivam as concepções que uma dada sociedade, num momento determinado, possui acerca de seu meio e das relações com ele estabelecidas”. Estes discursos são um pedaço substancial da formação cultural de um povo e, no que se diz respeito ao sertão, emergiram em diferentes contextos: da imprensa, do pensamento político e da pesquisa científica até o universo artístico, atingindo sobremaneira a literatura.

O pensamento geográfico produzido em redor do sertão o reconhece, portanto, como território de intensas contradições sociais, mas também como grande estimulador do imaginário literário – sobretudo a partir da década de 1930. Quando o então cenário mundial encontrava-se conturbado – ainda sentindo os efeitos da Primeira Grande Guerra e se preparando para a Segunda – e a conjuntura nacional via-se marcada por instabilidades sociais e pela ditadura de Vargas, literatos brasileiros reagiram política e esteticamente, procurando interpretar a realidade e a responder a grandes questões humanas. No mesmo sertão das injustiças, tinham nascido os escritores modernistas da década de 1930, que, junto aos intelectuais engajados, se preocuparam em escrever e denunciar os conflitos sertanejos, tema principal de sua produção escrita.

A Geração de 30 – como ficaram conhecidos os regionalistas da segunda fase do modernismo – aliara-se à visão crítica das relações sociais, dando origem à produção de romances cujos personagens e enredos imbricam-se ao contexto de calamidade pública ocasionados pela seca. Essa imbricação é formulada de tal forma que os escritores dessa geração acreditavam que o meio exercia influência sobre os homens, transformando-os em sobreviventes, resistentes de uma situação que ultrapassava o natural – a estiagem, a paisagem, o solo paupérrimo – e atingia o social e o político neste território.

Os traços neorrealistas dos romances dessa geração transformam a narrativa em instrumento de denúncia do subdesenvolvimento do país e desse tipo de determinismo do meio sobre o homem. Procurando retratar a estrutura econômica que favorecia o coronelismo sobre o qual se fundava a miséria da população nordestina, tais romances inauguravam a fase regionalista do modernismo.

O sertão de Graciliano

Dentre os escritores do período, Graciliano Ramos, também militante de esquerda pelo Partido Comunista Brasileiro, e preso durante a Ditadura Vargas por ser considerado subversivo, ocupa um dos lugares de maior destaque pela forma com que, em Vidas Secas, na escrita simples e crua de adjetivações, traduz a hostilidade do ambiente árido. Tal aridez se expande ao comportamento das personagens que, muitas vezes igualadas aos bichos, são apresentadas sem análises psicológicas profundas através de diálogos curtos, quase monossilábicos e gestos bruscos, voltados à sobrevivência imediata.

Nessa nova fase da produção cultural brasileira, o latifúndio não passou despercebido: em Vidas Secas, Graciliano o reconheceu como um dos fundamentais problemas sociais e políticos do sertão do século XX, identificando a má distribuição de terras como causa da miséria sertaneja para além dos longos períodos de estiagem. Graciliano faz uma clara associação entre seca e latifúndio no capítulo intitulado “Fabiano”, quando o narrador declara que era “tudo seco em redor e o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru” (RAMOS, data, p. 24). Para a personagem, o patrão era ladrão, pois as contas do salário estavam erradas, já que o que ele recebia era menos do que esperava receber. Esta análise da personagem, embora obviamente desprovida de engajamento político, reflete em si mesma a essência da relação entre trabalhador e patrão/latifundiário, pois, dentro desta relação, não existe salário justo – vez que todo salário é fruto da extração do que Marx chamou de mais-valia [2], na medida em que em todo trabalho realizado sob os moldes capitalistas, supõe-se usurpação de horas trabalhadas.

Vidas Secas, dessa forma, dialoga efetivamente com a história brasileira da década de 1930 – não simplesmente pela evidência que dá às contradições das relações latifundiárias em pleno país de capitalismo periférico, mas pela forma com que traz à luz a relação entre homem explorado, patrão e ambiente de trabalho, cujas contradições foram denunciadas pelos movimentos de esquerda que atuavam no país durante a mesma época e nos quais Graciliano estava inserido. O sertão, portanto, será palco dessas contradições agravadas pelos problemas naturais gerados pelos longos períodos de estiagem.

No romance, o leitor acompanha a trajetória de uma família de retirantes vítimas da seca, cuja vida humana é diminuta frente ao sofrimento, o cansaço e a fome, transformando a todos eles em seres animalizados, instintivos, perseguidos pela fome que os acompanha em todo o trajeto cíclico das personagens postas em fuga, cuja circularidade de suas relações de miséria – como propõe o próprio livro que intitula o primeiro capítulo por “Mudança” e o último por “Fuga” – seria possivelmente quebrada com o abandono daquele ambiente inabitável.

 Graciliano não constrói, apesar do diálogo com a esquerda revolucionária da época, personagens com ideal de rebelar-se contra a estrutura que favorece a situação de miséria em que se encontram: são retirantes postos em fuga que, apesar de refletirem sobre os próprios problemas, e de sofrerem com eles, limitam-se ao imediatismo, recorrendo ao próprio instinto – tal como Fabiano, que se rebela contra os desmandos do patrão –, mas sem uma perspectiva crítica e consciente acerca da estrutura econômica, política e social em que vivem. O instinto, rarefeito pela razão, responde ao fenômeno da fome não com a revolução – caminho para destruição dos problemas basilares que os colocam em condição de confinamento -, mas com a fuga.

Sobre a relação existente entre fome e instinto, Josué de Castro (1959, p. 21) pontua que

[…] o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos quanto a sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana. Considerando o instinto como o animal e só a razão como o social, a nossa civilização, em sua fase decadente, vem procurando negar sistematicamente o poder criador dos instintos, tidos como forças desprezíveis.

A seguir, veremos manifestações, nas personagens famintas, do instinto sobre o racional, porém numa relação dialética em que um e outro aparecem ligados, manifestações estas que norteiam todo o livro. A narrativa começa pelo capítulo “Mudança”, alusão quase irônica ao ato de fuga daquele lugar, onde nada muda, e cuja imagem áspera se repete em todo o livro:

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. (RAMOS, 1985, p.9)

Todos em caminhada, famintos, são andarilhos que, no entanto, nutrem na fuga a esperança de escapar da situação desesperadora a que estão confinados: sinhá Vitoria, os dois filhos, Fabiano, papagaio e a cachorra – esta, caçando preás para a família e contentando-se somente com a devoração do pescoço. Sem sequer preá para comer depois de muito andar em vão à procura de raízes e resto de farinha, Sinhá Vitória mergulha em pensamentos desconexos, lembranças do passado, “festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão” (RAMOS, 1985, p. 11)  quando o papagaio lhe desperta com um grito: acordando dos sonhos e encarando a realidade, sinhá Vitória mata o papagaio, um diminuto membro da família, sob a desculpa de que ele era mudo e inútil. Todos comem e retornam à caminhada, mais mudos que costumeiramente.

Como afirma a estudiosa Belmira Magalhães (2001, p. 144),

Enquanto relembra o passado, sinhá Vitória é despertada por um grito do papagaio e consegue enxergar com tamanha lucidez a realidade, que é capaz de agir efetiva e imediatamente sobre ela, matando o animal para proporcionar o alimento para si e para a família. A capacidade reflexiva é dada pela possibilidade de identificação com o gênero humano, pois, embora pareçam bichos, não o são, possuem memória, podem relembrar momentos de humanidade já vivida.

A narrativa segue destacando a importância da cachorra para o bando, imprimindo-lhe identidade através da atribuição de um nome – Baleia –, diferente das crianças que são identificadas por “o menino mais novo” e “o menino mais velho”. Era Baleia quem caçava e, vez ou outra, alimentava o bando com preás:

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. (RAMOS, 1985, p.14)

 Sinha Vitória, ao lamber e beijar o focinho ensanguentado da cachorra, proporciona uma mistura física com Baleia que evidencia relações entre homem e animal, confundindo o que seria beijo ou lambida, gratidão ou sobrevivência, afeto ou fome; num contexto em que não sinhá Vitória, mas a cachorra Baleia é a provedora. E não é a Baleia, mas Sinhá Vitória quem dá lambidas de agradecimento, em sinal de afeto típico dos cães. Sobre a passagem citada, Magalhães considera que

As ações de beijar e lamber referem-se a atos aparentemente desconexos, confusos para a interpretação […]. Uma mulher que é capaz de um ato de carinho espontâneo para com a cachorra que havia conseguido alimentos para a família, […] é capaz também de aproveitar o beijo para lamber o sangue do animal morto pela cadela. […] Só um ser pensante é capaz de fazer conexão entre duas ações díspares: a afetuosidade, o agradecimento, permeado da animalidade intrínseca do instinto de sobrevivência. A emoção, característica de seres sociais, está aqui presente, mesmo que confusa, misturada com instintos não controláveis. (MAGALHÃES, 2001, p.144-145)

A lembrança de uma humanidade embrutecida ocorre mais intensamente no capítulo seguinte, intitulado “Fabiano”. Depois de longa caminhada, a família abrigara-se em uma casa vazia que encontrara pelo caminho. Enquanto o resto do bando descansava no pátio da casa, Fabiano, debaixo de um juazeiro,

Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho […] pôs-se a fumar regalado.

– Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.

Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:

– Você é um bicho, Fabiano.

Isto para ele era motivo de orgulho. Sim, senhor, um bicho capaz de vencer dificuldades. (RAMOS, 1985, p.18)

Além de destacar a condição sub-humana com que se caracterizava Fabiano, o narrador aponta para as contradições de classe como principais percursoras desse sentimento de não humanidade: Fabiano não era humano, pois não possuía propriedade. Era-lhe reservada a categoria de trabalhador sem posses, “um cabra ocupado em guardar coisas dos outros” (p.18), a propriedade dos outros e, cuidando da propriedade que não lhe pertencia, passava a ser também parte dela: sentia-se cabra, portanto coisa, recolhido, quando em presença dos “brancos” – os patrões, à imagem e semelhança dos bichos que cuidava.

Vidas Secas, portanto, não versa somente sobre o problema da seca e da fome localizando o indivíduo entre esses dois fenômenos, mas trata tais problemas como originários das contradições de classe, evidenciadas na exploração dos menos favorecidos em favor dos senhores de terra, perpetuando oligarquias – e com elas as misérias que o próprio Graciliano, afiliado a convicções da esquerda revolucionária, denunciou.

O último capítulo do romance intitula-se “Fuga”, sinalizando que o bando, ao contrário do que se esperava do primeiro capítulo, “Mudança”, continuava em condição de miséria. Embora não sendo mais os mesmos do início do romance e tendo eles perdido papagaio e cadela pelo caminho trilhado, o ambiente era da mesma hostilidade, da mesma aridez, impondo sobre a todos o pesado existir, do qual se sonhava a fuga: “chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos.” (p.126).

Vidas Secas inicia em reticências e termina reticente, tal qual faz os ciclos da seca, que se renovam e renovam também as suas vítimas imbricadas nas contradições. Passados quase 80 anos da publicação original do romance, a reforma agrária ainda não se deu, a seca continua a fustigar seres humanos que querem fugir. Tal realidade apresenta a circularidade da perpetuação de misérias sertanejas. O sertão, ciclicamente, expulsará os sertanejos, despejando-os nas cidades.

Abre-se, para estes, um novo ciclo a ser vivido no centro urbano, dando continuidade à situação de miséria e desigualdade social, engordando o exército industrial de reserva [3] e a consequente situação de desemprego. O homem sertanejo, dessa maneira, libertando-se da calamidade do sertão, estaria enjaulado aos subempregos e à periferia das grandes cidades, com outros patrões, outras injustiças.

 Cinema: o velho e o Novo

Após a Segunda Grande Guerra, se inaugura uma nova fase nas relações internacionais e os Estados Unidos consolida-se como potência mundial, alargando sua influência econômica e política sobre a América Latina. No contexto nacional, o Brasil supera a Ditadura Vargas, e em sua redemocratização elege o General Eurico Gaspar Dutra para presidente da República quando “a política econômica brasileira foi se moldando à associação com o capital financeiro internacional, consoante com o plano do pós-guerra de imposição de uma nova ordem mundial” (CRUZ, s/d, p.1), alcançando o plano desenvolvimentista [4] de JK e o retorno de Getúlio Vargas ao poder, dessa vez através de eleições diretas. A pesquisadora Marta Vieira Cruz (s/d, p.1) afirma ainda que,

Com o retorno de Vargas, por meio de eleições ocorridas em outubro de 1950, a problemática nacional-desenvolvimentista manifesta-se ainda com certo vigor, consubstanciada em sua política econômica substitutiva de importação sustentada na poupança nacional, com os seus elementos correspondentes, a saber, urbanização, proletarização, etc. Isto é, o processo de desenvolvimento econômico baseado, exclusivamente, nas exportações tradicionais e na substituição de importações industriais de consumo, bem como de alguns bens duráveis de consumo e de capital.

Nota-se, porém, que apesar dos esforços para desenvolver o país, este permaneceu dependente e subdesenvolvido, sobrevivendo de exportação de matéria-prima e importação de bens de consumo, ainda que sobre essas importações tenham havido tentativas de equilíbrio com produtos nacionais. É dessa maneira que, entre os produtos importados de fora e consumidos em território nacional, estão os produtos da indústria cultural, sobretudo a norte-americana.

Como pontua Guy Hennebelle, “o imperialismo econômico não pode ser dissociado do imperialismo cultural e vice-versa” (1978, p.31), e é dessa forma que, durante a Guerra Fria e sua influência imperialista sobre os chamados países de Terceiro Mundo, os EUA começaram a panfletar o american way of life, inclusive através da maioria de suas produções cinematográficas sustentadas por Hollywood, exportando essas produções para todo o mundo, sobretudo aos países subdesenvolvidos.

No Brasil, as produções cinematográficas enfrentavam a situação de subdesenvolvimento encarando-o como um verdadeiro entrave para a produção cultural nacional. Esse entrave é percebido nas produções que tentavam copiar o modelo hollywoodiano, mas que, apesar de copiá-lo, não conseguiam o mesmo espaço e prestígio que ele possuía muito por causa da falta de recursos financeiros. Para o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes, o cinema no Brasil possui as marcas do subdesenvolvimento, pois “em cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado” (1996, p. 85).

Em frente a esse tipo de produção deficiente e mercadológica, surge o Cinema Novo. Alex Viany (1993) pontua que o movimento cinemanovista foi um movimento de renovação que começara a ser ouvido no principiar da década de 1950, em uma ofensiva de duas frentes: numa, contra o cosmopolitismo oco das produções mais pretensiosas, que importava o modelo hollywoodiano, mas sem os mesmos recursos; noutra, contra o populismo forçado das comédias musicais conhecidas por chanchadas, tudo isso em meio às dificuldades impostas pelas insígnias do subdesenvolvimento – mas, dessa vez, reciclando-o e instrumentalizando-o para a construção estética de uma nova forma de fazer cinema: com uma câmara na mão e uma ideia na cabeça, sem estúdio e com os poucos recursos disponíveis.

Em 1965, Glauber Rocha, um dos principais e mais notados nomes do movimento, participa da V Rassegnadel Cinema Latino-Americano, em Gênova; ocasião em que, durante as discussões em torno do movimento cinemanovista e assumindo posicionamento contra o então paternalismo europeu em relação às produções artísticas do Terceiro Mundo, discursa sobre o novo cinema cujo imperativo era a participação no processo político, social e cultural pelo compromisso histórico de, em relação à condição de subdesenvolvimento, adotar “uma determinação ainda mais firme de encontrar uma linguagem cinematográfica verdadeiramente capaz de refletir os tremendos problemas sociais e humanos do país” (VIANY, 1993, p.137).

Na ocasião, Glauber Rocha declara que a fome latina é a substância de sua própria sociedade, gestando “a trágica originalidade do cinema novo diante do cinema mundial” (2004, p. 65). Glauber apontou ainda para a relação entre colonizador e colonizado, afirmando que aquele está satisfeito com as artes produzidas nos países subdesenvolvidos “na medida em que satisfazem sua nostalgia do primitivismo” e se os colonizadores compreendem o que se fala, não é pela lucidez do colonizado, mas pelo humanitarismo que a informação produzida inspira (ROCHA, 2004, p. 63); o cineasta, dessa forma, define o paternalismo do europeu em relação ao colonizado como método de compreensão de “uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento” (p.64). Posteriormente, esta tese apresentada por Glauber se transforma no conhecido manifesto Eztetika da Fome. Sobre a estética, Ismail Xavier (1983, p.9) faz a seguinte reflexão:

Da fome. A estética. A preposição “da”, ao contrário da preposição “sobre”, marca a diferença: a fome não se define como tema, objeto do qual se fala. Ela se instala na própria forma de dizer, na própria textura das obras. Abordar o cinema novo no início dos anos 60 é trabalhar essa metáfora que permite nomear um estilo de fazer cinema. Um estilo que procura redefinir a relação do cineasta brasileiro com a carência de recursos, invertendo posições diante das exigências materiais e as convenções de linguagem próprias ao modelo industrial dominante […]. A estética da fome faz da fraqueza a sua força, transforma em lance de linguagem o que até então é dado técnico. Coloca em suspenso a escala de valores dada, interroga, questiona a realidade do subdesenvolvimento a partir de sua própria prática.

Esse resgate da situação de fome, de precariedade do colonizado, ao qual Glauber nomeia de miserabilismo, instrumentaliza o que antes era obstáculo para a produção artística – a carência técnica e tecnológica do cinema nacional, característica do subdesenvolvimento – e passa a ser sua própria estética, “elemento que informa sua estrutura e do qual se extrai a força da expressão” (XAVIER, 1983, p.9).

Dentre os cineastas do movimento cinemanovista está Nelson Pereira dos Santos, que filmou a adaptação de Vidas Secas (1963) da qual trataremos mais adiante. Em janeiro de 1951, Nelson escreve uma crítica à revista Fundamentos [5] sobre Caiçara (1950) [6]. O filme conta a história de uma moça que se casa com um homem autoritário e se muda para a aldeia de pescadores onde ele morava, ocasionando conflitos culturais e amorosos. Com o filme, inaugurava-se a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, considerada, por alguns críticos, como o marco inicial do cinema brasileiro. Intitulada “Caiçara – Negação do Cinema Brasileiro”, a crítica escrita por Nelson sobre Caiçara também foi uma crítica à Vera Cruz, onde ele diz:

Cinema brasileiro na verdade será aquele que reproduzir na tela a vida, as histórias, as lutas, as aspirações de nossa gente, do litoral ou do interior, no árduo esforço de marchar para o progresso, em meio a todo o atraso e a toda exploração, impostos pela reação. Cinema brasileiro será aquele que respeitar, ainda que falho inicialmente de técnica e de forma, a verdade e a realidade de nossa vida e de nossos hábitos, sem preocupação maliciosamente evidente de pôr em relevo costumes que não são nossos e cacoetes que nos estão sendo impingidos pelas múltiplas manifestações desse cosmopolitismo desmoralizante que quer aprofundar entre nós a confusão, a perversão e o espírito de derrota. (SANTOS apud FABRIS, 1994, p. 65)

Nelson discordou dos bons comentários de alguns críticos de cinema que consideraram o filme como o marco inicial da produção cinematográfica brasileira de “padrão internacional” e, ao contrário do que fora posto, Nelson ainda declara que

Se Caiçara procurou seguir a escola italiana [7] no que diz respeito às lições de realização propriamente dita, não aproveitou a mais positiva contribuição dessa escola: o conteúdo humano de suas figuras e de suas respectivas ações. […] humanizar, porém, as personagens […], não basta apresenta-las em seu meio, onde elas estabelecem na verdade suas relações de vida. O verdadeiro realismo não se acha somente na forma; está, antes de tudo, no assunto e no seu tratamento. (Apud Fabris, 1994, p. 66).

Sobre isso e resgatando o conceito de epifania joyceana, geralmente associada à ideia de descoberta e emoção diante dessa descoberta, Fabris pontua que a ideia dos cineastas que se opunham ao modelo cosmopolita de fonte hollywoodiana não era apenas jogar as realidades desastrosas na tela pura e simplesmente, mas, “lançar sobre essas realidades um olhar que permitisse ir além da aparência das coisas” (1994, p. 92). Para Nelson, não bastava compor um cenário de miséria, mas encará-lo como problema político, engajar a massa de trabalhadores e abrir terreno à transformação social – este ideal fortalecido, sobretudo, após a vitória da revolução cubana em 1959.

O Cinema Novo, portanto, surge no meio de uma geração de jovens inovadores e inspirados pelas movimentações revolucionárias do século XX, pelos levantes populares e lutas anticoloniais da América Latina – o próprio Nelson militou no Partido Comunista Brasileiro -, e também por movimentos cinematográficos, como o neorrealismo italiano [8] e a nouvelle vague francesa [9], que se opunham às produções vazias do cinema comercial.

Essa reflexão justificava não somente como as produções do novo cinema seriam produzidas, mas também por que, numa clara e objetiva tentativa de varrer a constatação passiva da condição de subdesenvolvimento para se construir, em seu lugar, uma arte engajada, de qualidade e que fosse o espelho a refletir a própria situação de miséria, no entanto capaz de provocar transformações sociais, políticas e culturais.

Da literatura ao cinema

Ainda em Gênova, Glauber Rocha explica que “o que fez do cinema novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade” (p.65). Quando Glauber Rocha fala em importância internacional, ele está se referindo a “quase quarenta prêmios internacionais em cerca de cinco anos” (VIANY, 1993, p. 136). Dentre as produções premiadas internacionalmente, está Vidas Secas (1963), do Nelson, premiado no festival de Cannes, na França e indicado à Palma de Ouro – além de que, segundo Salem (1987, p. 190) “bateu recorde de premiação não oficial: o Prêmio de Cinema de Arte […], o de melhor filme para a juventude, […] e o prêmio do OCIC (Office Catholique de Cinéma) ”. O OCIC justificou a premiação destacando “a linguagem cinematográfica original e sugestiva, tendendo, a descobrir de novo os sentimentos e os valores poéticos da vida cotidiana, tendo o mérito de enfrentá-la” (p. 191)

O filme inicia com um zumbido contínuo e a imagem do sertão se forma, até que, depois de um tempo, aparecem, distantes e em caminhada, como se houvessem sido engolidos pelo ambiente, sinhá Vitória, Fabiano, os dois meninos e os animais de estimação: são pequenos pontos que surgem na tela, minúsculos, até que a cachorra Baleia corre na frente e os retirantes começam a aparecer mais claramente. O zumbido não cessa, porém fica mais brando até que, depois de certo tempo, desaparece, cedendo lugar ao som dos passos das personagens na terra seca. Caminham um pouco até que, cansados, sentam-se sobre pedras. Sinha Vitória retira do baú que carrega na cabeça um saco de farinha e, com uma cuia, reparte entre todos. A farinha é comida seca. É neste momento da adaptação que sinhá Vitória mata o papagaio, fechando os olhos.

O filme é, em sua maior parte, filmado em plano gera l[10] e plano americano [11], com poucos primeiros planos [12] – estes, sendo utilizados apenas para os diálogos. O uso do plano geral favorece a imagem da seca, do ambiente árido, trazendo para o centro da tela a crueldade daquele ambiente inóspito. Tal como sugere o próprio romance, no filme há escassez de diálogo entre as personagens. Todos chegam a uma propriedade abandonada, anoitece e uma fina chuva cai.

Na sala, Sinha Vitória solta frases curtas – “a casa é forte”, “o pasto é bom” -, no que Fabiano só lhe responde “é”. Depois, só o barulho da chuva é ouvido. Sinha Vitória retoma o diálogo perguntando qual fora o fim de seu Tomás, Fabiano responde que ele também estava no mundo, assim como eles estavam, e então as falas de sinhá Vitória e Fabiano tornam-se mecânicas, como se houvessem sido decoradas, pois são despejadas, sobrepostas uma na outra, sem conexão e sem estabelecer um diálogo definido. Essa carência de diálogo favorece a imagem – é a imagem que, protagonista, traduz o livro para o cinema.

A luz no filme é, também, importante de ser percebida. A fotografia é de Luís Carlos Barreto [13], escalado pelo próprio Nelson, que queria uma fotografia “sem filtros, com o mínimo de iluminação e o mais natural possível” (SALEM, 1987, p. 172). A primeira impressão que se tem é a de que todo o filme foi gravado com iluminação natural, fazendo com que a luz fique estourada. Em entrevista a Ruy Gardnier e Daniel Caetano, Nelson explica que

Naquele tempo, branco e preto trabalhava com filtro amarelo, para evitar luz muito forte, põe o filtro, aí corta cinqüenta por cento, e o primeiro plano fica sem luz. Então o quê que faz? Tem que iluminar o primeiro plano. Os americanos usavam arcos para iluminar, o chinfrim aqui usava um rebatedor, aquela coisa de papel prateado que o ator não podia abrir o olho… E o que acontecia com as nuvens? Ficavam escuras, volumosas, lindas, no exterior, então, adoravam […]. Então a idéia era assim, tem que fazer um deserto, não ter nuvem, uma coisa inóspita, tem que fotografar a luz do lugar. […]. Eu não sei se vocês viram o álbum do Barreto, eu escrevi lá que o Cinema Novo começou no Cruzeiro, o “Brasil real”, a preocupação de fotografar o “Brasil real”, eles todos tinham essa preocupação, e faziam isso muito bem, com essa luz. Não dá para fotografar o retirante […] com requintes de iluminação, tem que fazer com a lente nua.

   E é dessa forma, através da fotografia em preto e branco, da luz estourada e da predileção pelo plano geral na maior parte do filme que, esteticamente, o sertão aparece representado: perverso, árido, fustigante, tendo tanta importância na adaptação quanto qualquer uma de suas personagens.

No filme, as contradições de classe abordadas no romance, anteriormente comentada, é retomada: Fabiano, depois de participar de uma roda de jogos, é preso injustamente por um soldado, reafirmando a estrutura de poder construída no sertão. Preso, Fabiano dorme ao lado de um cangaceiro enquanto sua família dorme ao relento, à sua espera. O cangaceiro não é personagem de Graciliano Ramos, mas Nelson explica que, no livro, enquanto estava preso, Fabiano “imagina entrar para o cangaço, virar cangaceiro, mas não tinha nada a ver isso aparecer como sonho, tinha de ser real” (PEREIRA apud SALEM, 1987, p. 183).

No dia seguinte à prisão, o patrão de Fabiano vai à cadeia para libertar o cangaceiro e, surpreendendo-se com ele preso, dá um jeito de libertá-lo também. Soltos, o cangaceiro convida Fabiano e família a se integrarem no bando, mas este responde, após perceber os sons do gado que cuidava, que não: o destino dele não era aquele, mas onde ele já estava, cumprindo o seu papel de resistir pacientemente, andarilhar pelo sertão buscando fugir. Nesta parte é reafirmado que Graciliano não escreveu personagens revolucionárias, que percebem, na revolução, a saída da situação de intensa miséria; mas personagens cuja sina é cíclica, se renova, como se renovou a diversos nordestinos da vida real.

O filme, tal qual o livro, inicia e termina reticente: começa e encerra com todos em caminhada. Em diálogo com Fabiano, indignada, Sinha Vitória questiona se um dia eles dormirão em cama de couro, questiona porque é que eles precisam viver como bichos, escondidos nos matos. Fabiano só responde que eles precisarão, ainda, caminhar muito, mas mostra-se otimista, pois, com as alpercatas novas, seria possível caminhar ainda mais.

Com a trouxa na cabeça, Sinha Vitória começa a sonhar em voz alta com o feijão, fartura, os meninos na escola, eles vivendo na cidade, com boas condições de vida, lendo livros e fazendo contas. Fabiano contrapõe os sonhos de Sinha Vitória, dizendo que a educação não serviu a seu Tomás, que sabia ler e fazer conta, mas não suportou caminhar como eles fazem. Fabiano, mais uma vez, coloca a sobrevivência imediata como mais importante que os sonhos. Sinha Vitória retruca, diz que não se pode viver como bichos para sempre.

A câmara volta-se para os meninos que caminhavam à frente. O zumbido que abrira o filme retorna alto e o plano geral revela a imagem do sertão, por onde todos eles continuariam caminhando. Param, encaram o ambiente, as mãos do menino menor protegem seus olhos do sol, e então todos retomam a caminhada, seguindo em frente, firmes, até que, aos poucos, diminuem, até se tornarem os mesmos pontos minúsculos na tela que iniciaram o filme.

Considerações finais

Em 1963, em entrevista a Alberto Shatovsky, da Manchete, Nelson declara que

Nenhum outro dos nossos romancistas tinha tão grande senso dos valores dramáticos […]. Os personagens que ele criou não eram títeres, criaturas inventadas, simples sombras saídas da imaginação de um ficcionista. Eram, ao contrário, seres vivos, de carne e osso, sangue e nervos, com reações lógicas e atos que obedeciam, sempre, a motivações profundas. Não há tipos inconsequentes ou artificiais em seus livros. Por isso mesmo eles seduzem a imaginação de um cineasta, porquanto estão no plano dos personagens criados por um Tolstoi ou um Dostoiewski. (NELSON apud SALEM, 1987, p. 184)

É dessa maneira que o diretor cinemanovista se posiciona em relação à dicotomia entre razão e instinto levantada logo na primeira parte deste trabalho: fica claro que, para Nelson, não se tratava de seres irracionais, mas densamente profundos; contextualizados, no entanto, por uma realidade que os fazia tão lógicos quanto Graciliano os descrevera – sem, no entanto, alargar-se em imaginação, mas na preocupação primeira de traduzir a mais pura realidade que pudesse ser encontrada no sertão. E era isso que fascinava o cineasta, criando uma relação entre a verdade que se traduziu nos anos de 1930-40, pela literatura e, posteriormente, em 1960, pelo cinema – não porque essa última manifestação artística copiou a primeira, mas porque a realidade da primeira se mostrou tão violenta e inesgotável, como propôs Graciliano, que continuou sendo verdade quando a segunda foi produzida, devendo ser traduzida outra vez.

Importante pontuar que Nelson – paulista de nascimento e que nunca enfrentou a seca – utiliza a visão de Graciliano Ramos – autor alagoano – sobre o sertão e o sertanejo aproveitando-a para traduzir um Brasil mais geral: subdesenvolvido, subserviente a grandes potências e consumidor do produto cultural de outros países. As duas formas de olhar o território fundem-se na perspectiva de que denunciando as calamidades e injustiças sociais do sertão, exporia a situação político-social do país.

Sobre a adaptação, a jornalista Helena Salem (1987) considera que “foi fiel, na letra e espírito, ao livro de Graciliano Ramos. A mesma concisão, secura, despojamento, poesia, o mesmo tempo – quase silêncio – dos personagens” (p. 181). De maneira geral, apesar de não fazer sucesso de público, a crítica reagiu positivamente ao filme, inclusive reconhecendo-o como “algo mais do que o melhor filme nacional”, como disse Cláudio Mello e Souza no Estado de Minas (apud SALEM, 1987, p. 185), o crítico ainda conclui que se trata do fundador de uma linguagem brasileira de cinema e que, com Vidas Secas, passamos a ter um verdadeiro, e por isso mesmo novo cinema nacional.

A pesquisadora Salete Sirino (2005, p. 5) pontua que

O estudo da transposição da arte literária para a arte cinematográfica do romance Vidas Secas possibilita a verificação de que passado-presente-futuro, ou original-tradução-recepção estão necessariamente atravessados pelos meios de produção social e artística, uma vez que é na tradução dos momentos da história para o presente que aparece como forma dominante, não a verdade do passado, mas a construção inteligível de nosso tempo.

É dessa forma que, na produção de Vidas Secas, se costura os problemas denunciados na década de 1930-40 pelo romance regionalista aos problemas da década de 1960, abordados e instrumentalizados pelos cinemanovistas: a seca não é somente a seca, mas o reflexo de uma sociedade subdesenvolvida, de capitalismo periférico, cujas relações no campo privilegiam os grandes donos de terra em detrimento de seus trabalhadores.

Circula-se nos ambientes políticos da atualidade o seguinte e certeiro ditado: “o problema não é a seca, mas a cerca”. A seca se renovou e, apesar do sertão haver se modernizado – agora com cisternas, luz elétrica, bolsa família, dentre outros benefícios que chegam pouco a pouco aos seus moradores -, os novos ciclos de seca continuam a atingir a população interiorana, chegando, recentemente, a atingir o litoral baiano, onde ela jamais fora imaginada

Os problemas de distribuição de terra pelo Brasil permanecem congelados em um tempo que demora a dissolvê-los, a reforma agrária permanece sendo sonho e a renovada atmosfera política apresenta–se conturbada e confusa, mas apregoando o continuísmo das contradições sociais e políticas apontadas neste trabalho.

Em relação ao Cinema Novo, este sufocado após o golpe militar em 1964, sobretudo pós 1968 [14], embora esgotado, não pode ser considerado morto: seu legado de lutas pela construção de um cinema político, nacional e verdadeiro está gravado em fitas, copiado para mídias diversas, distribuído – ainda que timidamente – em ambientes virtuais, rememorados sempre em um ou outro lugar.

 [1] Estudante de Letras e Artes pela Universidade Estadual de Santa Cruz

[2]No Livro I de O Capital (2013), Marx define mais-valia como o valor excedente da mercadoria que, produzido pelo operário, transforma-se em lucro para o patrão.

[3]Em Contribuição à crítica da economia política (2008), Marx define como exército industrial de reserva o excedente da força de trabalho; este excedente representa a mão de obra ociosa, desempregada, cuja competição, criada entre si e entre os trabalhadores empregados, contribui para o sucateamento das condições de trabalho e barateamento de salários da mesma forma que dificulta a organização de frentes das massas operárias.

[4] 50 anos em 5, que culminou na construção de Brasília.

[5]A Fundamentos foi uma revista de cultura geral veiculada pelo PCB. Criada em 1948, cede um espaço para a Associação Paulista de Cinema e, a partir daí, em quase todos os números da revista, haverá algum artigo sobre audiovisual.

[6] Produção de Alberto Cavalcanti, a primeira da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e direção de Adolfo Celi, Tom Payne e John Waterhouse, foi saudada como marco inicial da indústria cinematográfica brasileira.

[7] Nelson se refere ao neorrealismo italiano, um dos movimentos cinematográficos que inspiraram o movimento cinemanovista.

[8] Nelson, em entrevista à jornalista Helena Salem, explica que o neorrealismo italiano lhe ensinou que era possível fazer cinema sem estúdio, na rua, com pouca técnica, desde que a essência do filme esteja ligada à cultura nacional.

[9] Já o movimento francês, ainda segundo o próprio Nelson, mostrou que, num país como o nosso, com escassez de recursos técnicos, mais importante que ser técnico de um filme, é ser autor de um filme.

[10] Privilegia o cenário em detrimento das personagens.

[11] Enquadra as personagens acima dos joelhos ou altura da cintura.

[12] Enquadra a personagem na altura do busto.

[13] Fotógrafo e diretor de cinema brasileiro, também responsável pela fotografia de Dona Flor e seus dois maridos e O que é isso, companheiro?

[14] Segundo Guy Hennebelle, o período entre 1968 e 1970 marca o esgotamento do cinema novo e do cinema político.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Josué. Geografia da fome. 4.ed. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1984

CAETANO, Daniel; GARDNIER, Ruy. Entrevista com Nelson Pereira dos Santos. Contracampo: revista de cinema. UFF. Rio de Janeiro, nº 29, abril de 2001. Disponível em http://www.contracampo.com.br/29/entrevistanelson.htm. Acesso em: 15 abr. 2016.

CRUZ, Marta Vieira. Brasil nacional-desenvolvimentista (1946-1964). Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Marta_Vieira_Cruz_artigo.pdf. Acesso em 15 julho. 2016.

CUNHA, Euclides. Os sertões. 4.ed. São Paulo: Martin Claret, 2002

FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista?. São Paulo: Edusp / Fapesp, 1994.

GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: Trajetória do Desenvolvimento. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

HENNEBELLE, Guy. Os cinemas nacionais contra Hollywood.1.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

MAGALHÃES, Belmira. Vidas Secas: os desejos de sinha Vitória. 1.ed. Curitiba: Hd Livros, 2001

MORAES, Antonio Carlos Robert. Ideologias Geográficas: Espaço, Cultura e Política no Brasil. 5.ed. São Paulo: Annablume, 2005.

PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil. 43. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 54.ed. São Paulo: Record, 1985.

ROCHA, Glauber. Eztetyka da fome 65. In: Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004. P. 63-67.

SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: O sonho possível do cinema brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.

VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. 1.ed. Rio de Janeiro: Revan, 1993.

XAVIER, Ismail. Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

A imagem principal que ilustra esta página é do site colaborativo Obvious

Os bastidores do TCC

Clarissa Melo Contributor

Graduada, mestre e doutoranda em letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz (BA). É bolsista Capes e faz pesquisas sobre os seguintes temas: antropofagia, literatura colonial, representação do sertão e trabalhadores rurais, Cinema Novo e literatura marginal.

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