“Cachaceiro e raparigueiro”

A história era para ser de João Chima, guarda-poço, primeiro morador de Caldas do Jorro. Continua sendo, mas como ele morreu, em 1978, saiu pelos olhos e pela mente da viúva Joana Maria de Jesus, 90 anos, para quem o ex-marido não passava de “cachaceiro e raparigueiro”.

O único momento em que não fala mal de Chima — chega até esboçar um sorriso — é ao lembrar do dia em que se conheceram. Ela foi tomar banho nas águas quentes e medicinais do Jorro e os dois se encontraram:

“Ele deu com os olhos em mim e me arrancou de lá de onde vim para cá”.

Os dois foram casados pelo padre Carlos Olímpio da Silva Ribeiro, de Serrinha, um dos primeiros a montar barraca perto do poço para cuidar de doenças de pele.

Daí para frente é só sofrimento.

João Chima nasceu em Maceté, que na língua dos índios significa terra rústica. Na época, era povoado de Tucano, depois passou para Quijingue.

Por uns trocados, foi parar na Fazenda Macaco, na localidade de Boca da Onça, onde engenheiros brasileiros e americanos procuravam petróleo.

As escavações duraram de abril de 1948 a janeiro de 1949. Em vez do que procuravam, os técnicos esbarraram num aquífero que faz jorrar água abundante até hoje. Os engenheiros foram embora e Chima ficou cuidando do poço e das ferramentas que deixaram.

“Ele foi burro. Chegou primeiro e pegou só um pedacinho de terra, que depois dividiu com o amigo Tomás. Os outros que vieram em seguida ficaram com terrenos bem maiores”.

João Chima, para desespero da mulher, não se ligava em dinheiro. Muitas vezes não recebeu pelo trabalho. Também não foi cobrar.

João e Joana tiveram 11 filhos, mesmo ele repetindo que as raparigas eram melhores do que ela.

Dos sete homens e quatro mulheres, um morreu ao nascer, outro pouco depois que nasceu e o mais velho partiu “botando sangue por todos os lados”, em 1993.

No relato de Joana, que começou a conversa mal-humorada, mas foi melhorando, João não prestava. Espancava filhos e embuchava mulheres complicadas.

“Uma matou o bebê que teve com ele. Outra amarrou o filho e o enforcou no pé de umbuzeiro porque o menino não queria parar de comer pipoca. Essa foi presa. Fiquei sabendo porque o povo me contava.”

Outra parceira de Chima — e relatando isso Joana parece se vingar — “botava homens em cima dela, quando ele saia de casa.”

A viúva desfia relatos das malvadezas do marido com outras mulheres como quem vai rezando a medida que desliza as mãos por um rosário.

“Por que a senhora nunca o deixou?”

“Sei lá!”

CRIAÇÃO DOS FILHOS

Sem poder contar com o marido, Joana fez o que estava ao seu alcance para criar a filharada. Ela ampliou o imóvel em que vive até hoje. Na frente, é um bar, que Menininho, um de seus garotos, toma conta.

O bar da família Chima fica entre o terreno da casa que João doou para um amigo e o imóvel que a viúva ampliou.

Joana consertava a casa, enquanto o marido e o colega dele Jairzinho Piroca construíam imóveis de adobe na rua dos coronéis. Cobravam pouco e gastavam em bebida.

Chima também matava bois para os outros, mas não cobrava pelo serviço.

Para dar de comer a criançada, Joana foi trabalhar em um abrigo de doentes. Lavava, remendava, cozinhava. Fora dali, lavava mais roupa para quem pudesse pagar.

De noite, não dormia. Preparava mingau para vender de madrugada nos chafarizes de Caldas do Jorro.

“Eu deitava e não dormia, ficava pensando em ralar coco. Não sabia fazer mingau direito. Muitas vezes, subia o fedor de azedo quando eu destampava a panela”.

ALERGIA

Joana nunca se deu muito bem no Jorro. É alérgica a água quente.

Com o tempo, vieram as doenças: pressão alta, colesterol elevado e diabetes, que deixa braços e pernas feridos. A pior de todas, porém, segundo ela, se chamava João Chima. 

“A senhora sente falta dele?”
“Eu não. Deus me livre!”

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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